11.3.09

Camera, de Cronenberge e texto de Daniel Caetano

.





.


Câmera, morte, vida e vida - sobre Camera, de David Cronenberg"

Photography is death. A fotografia , ao registrar um instante, registra a morte daquele instante. O rosto filmado de um ator é como uma máscara mortuária – o ator se transformará futuramente, e aquele rosto nunca mais vai existir senão em sua representação fotográfica. Atira-se (to shoot, em inglês, o mesmo termo usado para ‘filma-se’) em nome de quê? Da vida – ou do entretenimento. Não é assim mesmo?

O filme Câmera é um curta-metragem de pouco menos de sete minutos, escrito e dirigido por David Cronenberg e produzido em comemoração ao aniversário de 25 anos do Festival de Cinema de Toronto. Os diretores do Festival queriam ter um pequeno filme que falasse do cinema. Tiveram Câmera. Saíram no lucro.

Pode-se resumir a narrativa a um ensaio de um ator enquanto filmagens estão sendo preparadas à sua volta – e, quando começa a rodar o texto que estava sendo ensaiado, ele parece compreender e emocionar-se com o que disse até então. Esse é só o truque narrativo, porque há detalhes insólitos que terminam por justificar plenamente o estado de choque em que entra o ator quando vai repetir seu discurso. Para começar, quem nos fala é um senhor que parece tecer comentários sobre o que estamos vendo – um bando de crianças que, inexplicavelmente, estão preparando uma filmagem como autênticos profissionais de cinema. É assim que começa o filme, apresentando de cara esta situação – ouvimos a narração: "Um dia, as crianças trouxeram para casa uma velha câmera, não sei onde a encontraram, e ficaram terrivelmente excitadas. Resolveram fazer um filme...", enquanto vemos a cena bizarra de várias crianças pilotando uma câmera profissional numa grua dolly (com rodinhas).

Se esta cena é insólita, o depoimento por sua vez é o mais plausível que seu tom agônico permite. Depois de nos apresentar este estranho mundo do cinema das crianças, o narrador nos conta que era ator e que perdeu o interesse por câmeras e filmagens – afinal, como ele nos diz, fotografia é morte, e isso para um ator não é um tema abstrato. Ele não queria que aquele filme fosse adiante – crianças e morte são uma péssima combinação, como ele nos adverte. Conta-nos então de um pesadelo que teve, de estar presente numa sessão de um filme em uma sala de cinema e perceber que ele e todos os presentes estavam sendo envelhecidos rapidamente enquanto assistiam ao filme, como se da tela saísse uma "doença do filme" – pesadelo esse que o acordava apavorado. E, no entanto, agora o pesadelo era real. Conforme o tempo passou, assistindo aos seus filmes antigos, percebeu que o pesadelo se transformava em realidade – fotografia é morte – e nos convida a confirmar isso em seu rosto envelhecido.

Mas, enfim, não adianta ele chegar a todas essas conclusões, as crianças resolveram brincar a sério com a câmera, vão rodar um filme e ele vai ter que fazer parte disso – "as crianças, vocês sabem, quando teimam em fazer uma coisa...". Além disso, com o tempo, ele reconhece, ele já foi assimilando melhor as idéias, passando a ter uma relação não mais que "melancólica" com a câmera. Afinal de contas, a câmera também já está velha, já lhe parece uma conhecida de longa data. E é importante lembrar que as crianças estavam se divertindo, e tudo aquilo parecia ser ‘puro e inocente’ – "ainda que nada nesse caso possa ser considerado puro ou inocente".

Então, tudo pronto, hora de rodar – a imagem que víamos até então era feita em vídeo digital. A criança que representa o diretor-autor do grupo dá o sinal: "ação!", e então surge para nós o plano filmado – o único feito em película em Câmera. Nosso narrador, maquiado e bem-iluminado como não esteve em nenhum outro momento, começa seu discurso: "Um dia, as crianças trouxeram para casa uma velha câmera, não sei onde a encontraram, e ficaram terrivelmente excitadas...". Ele repete a fala inicial. Neste momento entendemos que todo aquele depoimento emocionado era um "ensaio". Só então que isso fica claro – era um ator ensaiando o discurso feito por um ator. Mas aí algo acontece. Como dizem os paulistas, cai a ficha. Não há mais para o ator distância entre ele e o personagem – a câmera o desnudou. Nessa hora, o discurso ensaiado já foi dito, e basta o silêncio – do qual somos cúmplices – e a tristeza que se abate por parecer saber o script de cor.

Se há cinema para as crianças, mal ou bem, todos podemos ser um pouco crianças – e que bom que as crianças sabem se divertir. A câmera pode matar o instante que registra, mas é ela que cria os instantes que por si só nunca existiriam – como o filme nos mostra, a câmera traz à tona o silêncio final e a vida transborda no filme. As crianças se divertem – e que bom que podemos participar, que bom que somos todos crianças. Se filma-se e atira-se por entretenimento, se a fotografia é morte de forma tão infantil, que a nossa melancolia nos conceda que, por vezes, isso pareça ‘puro e inocente’, ainda que ‘puro e inocente’ sejam termos que raramente podem ser aplicados nesses casos.

Cronenberg fez um filme de sete minutos que explicitou e denunciou a ‘doença da tela’ – mas que mal faz ela por si só? Não será que ela apenas nos espelha?

Ao olhar o cinema, é um filme que fala da velhice e da juventude, da morte, da vida, da vida que se renova e que produz, irresponsável e teimosa. Só que é um filme amargo, melancólico como só ele – em seus poucos instantes nós nos damos conta de como somos crianças empolgadas e como somos velhos melancólicos, e como uma coisa sucede a outra natural(e cruel?)mente.

Curto como é, no entanto é também, possivelmente, o maior filme do ano. Se, por um lado, retoma vários dos temas que sempre interessaram a Cronenberg (como a tal ‘doença do filme’ ou a transformação causada pelas estranhas relações com a tecnologia), esse filme se torna um marco em sua carreira pela melancolia definitiva (e até carinhosa) que dá tom ao filme, como a nenhum outro até então – além disso, há um sincero e revelador carinho pelos filmes que as crianças fazem.

É preciso acrescentar, finalmente, que a atuação de Leslie Carlson é de entrar para a história da velhice melancólica – que bom que uma câmera a registrou.

texto do blog
http://daniel-caetano.blogspot.com/

.

2.3.09

está na zeta filmes, com haneke

.

"Uma das coisas mais importantes para um cineasta é usar a fantasia do espectador. O público tem que fazer suas próprias cenas, e qualquer coisa que eu mostre significa diminuir a fantasia do espectador".
"Uma forma de arte está obrigada a confrontar a realidade, a tentar encontrar um pequeno pedaço da verdade".

Michael Haneke é o grande poeta contemporâneo do cinema, com sua desafeição e seu estranhamento, e por consequência é o cineasta melhor equipado para falar desses tempos absurdos. Seus personagens são voyeurs passivos, separados da experiência real pela tela da televisão. Eles são nós, espectadores insensíveis, filhos do divórcio, escravos do consumismo.

Diretor de "Violência Gratuita" (Funny Games/1997) e "Código Desconhecido" (Code Inconnu/2000) ele fala uma mistura de alemão, francês e inglês. Seu filme "A Professora de Piano" (The Piano Teacher/2001) baseado no romance de Elfriede Jelinek de 1983, é a história de uma reprimida professora de piano e seu jovem pupilo, que desperta nela impulsos sadomasoquistas. Seus protagonistas Isabelle Huppert e Benoit Magimel receberam os prêmios de interpretação em Cannes. O filme ganhou também o Grande Prêmio do Júri do Festival. Nesta entrevista ele fala da atualidade de seus tabalhos e da diferença entre cinema e o filme feito especialmente para TV.

iW>> Qual é o seu processo de adaptação, porque "A Professora de Piano", como seu filme mais recente "The Castle" baseado em Kafka, é claramente uma interpretação pessoal que quase nunca permanece fiel aos eventos do original.
Haneke >> Eu colocaria uma linha entre "The Castle" e "A Professora de Piano", porque "The Castle" foi feito para TV, e estou bem ciente da distinção entre uma versão para TV e de um filme. Filmes para TV têm que ser muito próximos ao livro, principalmente porque o objetivo com um filme para TV que traduz literatura é fazer o público, depois de ver a versão, pegar o livro e lê-lo por conta própria. Eu acho que a TV nunca pode ser uma forma de arte, porque ela atende às expectativas do público. Não ousaria transformar "The Castle" em um filme para a tela grande; na TV tudo bem, porque ela tem objetivos diferentes. Mas com "A Professora de Piano", se você compara a estrutura do romance à estrutura do filme, é realmente muito diferente, e sinto que lidei muito livremente com o romance e o modo que ele foi escrito. Eu diria que minha visão da história está mais distanciada e leve, enquanto o romance é quase nervoso e muito emocional. O livro é muito mais subjetivo e o filme é muito mais objetivo.

iW>> Numa entrevista sobre "Código Desconhecido" você disse ser impossível escalar uma estrela de cinema como Juliette Binoche em um filme simples, ao menos que ela seja escalada como uma estrela de cinema. Isabelle Huppert é uma grande estrela do cinema, mesmo que você não classifique "A Professora de Piano" como um filme estiloso.
Haneke >> "A Professora de Piano" é uma paródia do melodrama. Como cineasta europeu, você não pode fazer um filme estiloso seriamente. Você só pode fazer paródias.

iW>> Por que isso?
Haneke >> Porque um filme estiloso, por definição é uma mentira. Um filme está tentando ser arte, consequentemente precisa tentar lidar com a realidade. Não se faz isso com mentiras. Se filmes fossem somente negócio, então você poderia mentir. Você pode vender a mentira com uma boa consciência.

iW>> Isabelle Huppert não é a primeira pessoa que pensaria para o papel. Não conseguia imaginar que alguém tão bonita pudesse parecer tão comum.
Haneke >> Não considero Isabelle uma pessoa glamourosa. Para mim, Julia Roberts é glamourosa, mas quando você vê os filmes de Isabelle, em muitos deles ela aparece de maneira muito delicada, muito simples. Minha principal atração por Isabelle era que, por um lado ela pode ser muito vulnerável e por outro ela pode ser fria e intelectual. Ela é a vítima no mesmo momento que é culpada, e não existem muitas atrizes que tem esse alcance.

iW>> Gostaria de falar sobre seus primeiros trabalhos. Você olha para eles como uma espécie de treinamento, ou você considera seus trabalhos antes de "The Seventh Continent" tão viáveis como seus últimos e mais conhecidos filmes?
Haneke >> Meu aprendizado se deu no teatro e na televisão, particularmente trabalhando com atores. Você pode aprender muito mais no teatro do que dirigindo um filme, porque quando você está filmando você não tem tempo para trabalhar com os atores de verdade. Você tem que aprender essa coisa em outro lugar. Claro que esses filmes que fiz para TV são bem reconhecidos como filmes meus. Mas, de novo, são filmes para TV, e como disse antes, filmes para TV são muito diferentes de cinema, porque na TV eles tem propósitos especiais: lidar com uma certa estrutura de público e o que esse público espera. Então eles nunca poderão realmente fazer o que um filme para cinema faz. Fiquei 20 anos fazendo filmes para televisão e etc., não porque não tive a oportunidade de fazer um filme de verdade. Mas sobretudo, queria encontrar minha própria linguagem.

iW>> Esta "linguagem", como você coloca, consiste numa dissociação entre pessoas e objetos que eles adquirem, até que a história pareça contada do ponto de vista dos objetos; as pessoas são quase incidentais. Você poderia dizer que os personagens principais de "The Seventh Continent", são o despertador, um aquário e um pacote de brócolis congelados, e nunca nenhum deles pareceram tão sinistros.
Haneke >> Basicamente, existem tantos filmes, e muitos deles só reciclam o que já existe. Não há necessidade em ser outra pessoa que só recicla o que já existe. O filme tenta mostrar que somos vítimas das estruturas que construímos, do nosso meio-ambiente. Todas essas coisas são metáforas destas estruturas. O que realmente me interessa não é a família que comete o suicídio porque, é triste, existem muitas dessas. O que achei fascinante era que a família que sai e comete suicídio, mas antes disso, destrói tudo que possuem. Acho isso uma boa metáfora da nossa situação.

iW>> Parece particularmente uma boa metáfora à luz dos eventos de 11 de setembro, e a discussão que agora as pessoas passam mais tempo com suas famílias e menos tempo se preocupando com a carreira e a saúde pessoal. É exatamente a espécie de liberação que a família em "The Seventh Continent" parece procurar, mesmo o filme tendo sido feito mais de uma década atrás.
Haneke >> Por isso deixei a barba crescer. Porque queria ser um profeta.

iW>> Seus filmes, até e incluindo "A Professora de Piano", parecem construídos de momentos que a maioria dos filmes deixam de lado – as pausas desajeitadas, os momentos que precedem e seguem um evento mais do que o evento em si. Há uma profunda falta de sensacionalismo, mesmo que você frequentemente escolha temas sensacionalistas.
Haneke >> Na verdade é uma forma de respeito pelo que acontece ali. É muito tentador, é claro, não ter este tipo de respeito, apenas sentar naquele evento espetacular, e isso é o que a maioria de filmes de Hollywood faz. Por exemplo, se você pegar "A Lista de Schindler" você tem aquela cena do chuveiro, acho absolutamente nojento mostrar isso. Ninguém deveria mostrar coisas como essas.

iW>> O fato de você não mostrar essas coisas é chave em seus filmes. Por exemplo, seus filmes têm sido criticados frequentemente por sua violência, mesmo que a maior parte desta violência ocorra fora da tela.
Haneke >> Porque uso sua fantasia. Acho que isso é uma das coisas mais importantes para um cineasta: usar a fantasia do espectador. O público tem que fazer suas próprias cenas, e qualquer coisa que eu mostre significa diminuir a fantasia do espectador.


iW>> Existe a noção que "fuga da realidade" é frequentemente considerada a razão das pessoas para irem ao cinema. Seus filmes de certo modo são uma fuga para a realidade.
Haneke >> Quero deixar claro: não é que eu odeie o cinema mainstream. Ele é perfeitamente legal. Existem muitas pessoas que precisam de fugir, porque estão em situações difíceis, então eles têm o direito de fugir do mundo. Mas isto não tem nada a ver com uma forma de arte. Uma forma de arte está obrigada a confrontar a realidade, a tentar encontrar um pequeno pedaço da verdade.

Por: Scott Foundas
Tradução: Eduardo Cerqueira

Pedestres

andantes