31.12.09

 Luiz Carlos de Oliveira Júnior - Contracampo

O MITO E A REALIDADE DO CINEMA BRASILEIRO

O Brasil do século XXI é um país novo-rico e conservador. Se o cinema serve de indicador de alguma coisa, podemos indagar de que forma ele fornece imagens que, daqui a anos ou décadas, servirão de documento vivo desta fase de emergência econômica e involução moral. Provavelmente, essas imagens estarão localizadas num conjunto de filmes cujas pretensões artísticas são menos importantes que as de bilheteria. Quem quiser saber como estava funcionando a cabeça do consumidor médio brasileiro no final dos anos 2000 terá de recorrer a Se Eu Fosse Você, A Mulher Invisível, Divã e outros filmes que fizeram sucesso. Esses filmes dão um testemunho fiel – justamente porque incapazes de ir além – da atmosfera geral do momento em que são feitos, algo que muitos filmes bons, ou acima da média, não têm conseguido. Talvez tenha sido assim desde sempre: o espírito do tempo imprime melhor nos filmes comerciais de artesãos (sejam eles competentes ou não) do que nos filmes que buscam maior valor artístico individual.


(...)


Conforme já devem ter dito por aí, muitos dos filmes brasileiros desta década que abordaram a marginalidade partilham um certo voyeurismo sociológico, satisfazem a curiosidade da classe média sobre o que se passa do lado de lá da sociedade. Com o detalhe de que esse universo exótico e perigoso não está distante no tempo e no espaço – pelo contrário: deriva de matéria social atuante no cotidiano dos centros urbanos, constitui uma “ameaça” presente. Os filmes de favela e tráfico, em tese, não poderiam fazer como O Cangaceiro de Lima Barreto ou os nordesterns de Carlos Coimbra e Wilson Silva faziam décadas atrás. Naqueles filmes, o cangaço era representado como uma forma de banditismo social que não existia mais, que pertencia a um passado pré-civilizatório, portanto neutralizada pelo movimento histórico de progresso. Os cangaceiros já não eram mais uma força social atuante no sertão nordestino, e sim conteúdo de lendas e contos populares. Nos filmes de favela, diferentemente, a realidade retratada é contígua à nossa, pertence ao mesmo mundo e à mesma época em que vivemos. E, no entanto, o modelo de ficção adotado pela maioria desses filmes é igualmente a mitologia e a fabulação romântica. Mesmo Tropa de Elite, com toda sua urgência, não se furtou a fazer um recuo de uma década e narrar a história de Capitão Nascimento e do BOPE como quem fala de uma liga da justiça que não existe mais naquele estado de pureza e quintessência. Um mito do Rio de Janeiro moderno.
 O par violência-mitologia sempre existiu no cinema. Sobretudo no cinema americano, que muito cedo soube encontrar – no faroeste, no filme de gangster, no filme de guerra etc – o ponto de fusão entre os mitos fundadores dos EUA e a violência de sua História. Aqui no Brasil, tanto o cangaço recebeu uma representação fantasista regulada pelos códigos ficcionais importados do western como a violência urbana também teve sua realidade transformada em terreno mitológico em filmes que ganharam força a partir dos anos 1960. Boca de Ouro, Lúcio Flávio, Barra Pesada e outros mais enveredaram pela realidade das ruas seguindo a bússola do folclore marginal brasileiro. A Rainha Diaba (Antônio Carlos da Fontoura, 1973-74), por exemplo, dramatiza a disputa de poder e território no tráfico de drogas do Rio de Janeiro dos anos 70 tendo como protagonista um marginal homossexual claramente inspirado na mitologia associada a Madame Satã, que marcara época na Lapa dos anos 30. Mais que a realidade do submundo, interessa sua mitologia.

(...)

Mas a novidade trazida pela retomada e acentuada nos últimos anos é que existem outros modelos de mitificação em jogo. Certas operações que se tentam ou se pensam passar pela lente objetiva de um realismo espontâneo são na verdade visões entortadas de algum mito criado pela história do cinema brasileiro. Garapa, mais recente filme de José Padilha, é sintomático. Ele tem certeza de que quer filmar a realidade nua e crua, mas para isso repete a luz estourada de Vidas Secas. A luz atravessa quatro décadas e chega ao filme já totalmente impregnada dessa viagem pelo tempo. A estratégia de aproximação-distanciamento é o estilo tateante da câmera, a abordagem de documentário moderno que hoje soa old school. O filtro mítico combina com o tema escolhido: a pobreza é mesmo essa notícia velha, essa coisa distante da realidade da maioria das pessoas que fazem cinema no Brasil. O que espanta hoje como dado bruto não é mais a quantidade de gente pobre que existe no país nem as condições em que elas vivem (infelizmente nos acostumamos a isso). O dado espantoso é a quantidade de gente rica e o aumento do poder aquisitivo da classe média, e os únicos filmes de 2009 que daqui a vinte anos servirão de documento confiável dessa realidade são Se eu fosse você 2, Divã, A mulher invisível, Os Normais 2 e afins. Filmes sem qualquer visão crítica, sem inteligência, mas que darão algum tipo de relato fiel de uma classe que é o emblema do Brasil contemporâneo. O brasileiro novo-rico está ali representado junto a seus gostos, fetiches, sonhos de consumo, fantasmas... Aquela cenografia cafona em tons pastéis, aquele modelo de encenação aprendido na telenovela e na publicidade, aquela luz de shopping center, aqueles atores famosos em papéis que supostamente desafiam seu repertório já tornado padrão na TV, aquela infantilização da sexualidade, aquela falsa aparência de bom acabamento técnico (quando não raro esses filmes são tremendamente mal feitos e sem o menor domínio técnico ou dramatúrgico, a exemplo de Divã e Os Normais 2), enfim, é isso que satisfaz as necessidades elementares de identificação e reabastece o imaginário das classes média e rica brasileiras. É esse o espelho do Brasil do BRIC e do Rio de Janeiro das Olimpíadas de 2016.

***

“O negócio é fazer filmes péssimos”, dizia Jairo Ferreira no final dos anos sessenta. Péssimos, mas necessários.

A Mulher de Todos, por exemplo, era um filme péssimo. Provocador, mal comportado, cheio de piadas de mau gosto. Quarenta anos depois, tivemos Encarnação do Demônio, também um filme péssimo (apesar da indumentária feita por estilista famoso e outros requintes mais). Péssimo e necessário, como sempre foram os filmes de Mojica. Ao contrário do sucesso de público de A Mulher de Todos em 1969, Encarnação do Demônio foi um fiasco em 2008. O público do cinema brasileiro de hoje só quer saber de filme “bom”. Essa é a realidade.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

Texto compilado da Contracampo.


Parte do texto foi subtraído. Espero que o trecho que eu trouxe os leve até a revista, que tem material vasto.

29.12.09

Rivette

“O importante é aquilo que eu vejo a partir do
que o ator “dá”, segundo um processo pessoal
dele, que não me diz respeito. Quando Emanuelle
[Béart] me propõe alguma coisa, ela não vem falar
comigo dizendo “E se eu fizesse isso...?” Ela faz.
Em seguida eu vejo ela interpretar – não no visor
da câmera (eu sei muito bem o que ela filma,
conheço sua posição e sua óptica, que é quase
sempre a mesma) – e posso reagir em relação à
realidade, a uma matéria que existe. Essa
realidade, essa “matéria”, é Emanuelle atuando.”
“O fato de eu assistir a tantos filmes parece de fato
assustar as pessoas. Muitos cineastas fingem que
nunca vêem nada, e isso sempre pareceu muito
estranho para mim. Todo mundo aceita o fato de
que escritores lêem livros, escritores vão a
exposições e inevitavelmente são influenciados
pelo trabalho dos grandes artistas que vieram
antes deles, que os músicos ouçam música antiga
além das coisas novas... Então por que as pessoas
acham estranho que cineastas – ou pessoas que
querem tornar-se cineastas – vejam filmes?
Quando você vê os filmes de certos diretores,
você pensa que a história do cinema começa para
eles em torno dos anos 80. Os filmes deles
provavelmente seriam muito melhores se eles
tivessem visto um pouquinho mais de filmes, o
que vai contra aquela idéia estúpida de que você
corre o risco de ser influenciado se assistir filmes
demais. Na verdade, é quando você vê muito
pouco que você corre esse risco. Se você vê muita
coisa, você pode escolher os filmes pelos quais
você se influencia. Às vezes a escolha não é
consciente, mas na vida há coisas que são mais
poderosas do que nós, e que nos afetam
profundamente. Se eu sou influenciado por
Hitchcock, Rossellini ou Renoir sem perceber,
melhor pra mim. Se eu fizer algo sub-Hitchcock, já
fico muito feliz com isso. [Jean] Cocteau
costumava dizer: ‘Imite, e o que é pessoal vai
aparecer eventualmente apesar de você. Dá
sempre pra tentar.”

Jacques Rivette

texto vindo do blog do Francis Vogner.

13.12.09

O ESTADO DAS COISAS

Há uma linha, ainda que um tanto enigmática, unindo alguns dos filmes mais instigantes trazidos pelos festivais recentes. Se a última década transbordou em filmes episódicos e se refestelou na narrativa fragmentária pós-Pulp Fiction, o fato é que de três ou quatro anos para cá o cinema vem apresentando filmes tanto mais importantes quanto mais simplificam seu recorte temporal, de preferência mantendo-o linear (Elefante e Dez, como sempre, são as exceções das exceções). Passada a euforia da desconstrução narrativa – que, de Corra, Lola, Corra a 21 Gramas, expõe um vasto painel pelo qual perdemos o interesse lá pela metade do caminho –, alguns filmes manifestaram novas opções estéticas interessantes. Gerry, Shara, Eureka, Eternamente Sua, The Brown Bunny, Encontros e Desencontros, Japão, O Pântano: cada qual a seu modo, estes filmes trazem alguma coisa muito simples e muito singular.

Os planos alongados de Eternamente Sua e Gerry, por exemplo, não se sustentam apenas numa proposta de narratividade mínima: são planos que respondem a uma duração de outra ordem, não necessariamente da ação (ou não-ação, que seja) e sua inserção no espaço-tempo, mas antes da pregnância de uma sensação. Muito mais do que o narrador de uma história, o cineasta passa a ser o arquiteto do espaço onde se projetam sensações - e estas formam corpos. Mostrar diversos pontos de vista sobre um mesmo evento importa menos do que impregnar o espaço com uma visão que, em meio a tantas outras, é apenas uma visão possível. Está em jogo justamente a singularidade do olhar, seu prolongamento afetivo na imagem. Instaura-se uma nova modalidade de concepção realista do espaço fílmico, em nada lacunar ou dispersiva, e sim calcada no preenchimento: é como se houvesse agora a possibilidade de uma linguagem que suprime os intervalos entre os signos, estruturando-se na contigüidade radical entre eles.

A questão deixa de ser a ausência (total ou parcial) de sentido e passa a ser a profusão de sentidos. A complexidade da violência nas escolas americanas está menos na sua falta de sentido do que na extensão indeterminável do campo de percepção que aqueles jovens atravessam (Elefante). Da mesma forma, o deserto de Gerry não tem tamanho apreensível, cresce indefinidamente pelas bordas da imagem. Impossibilitadas de crescer para o fundo (Gus Van Sant já trabalha nesse filme com pouco uso da profundidade de campo), as imagens de Gerry fogem para as laterais do formato 1:2.35, e o filme se esprai pelo deserto como uma pintura abstrata. Os personagens de Matt Damon e Casey Affleck pouco a pouco desmontam a representação, perdem a consciência que têm do entorno, perdem a noção do espaço, para refazê-la então do zero (como na cena deles olhando o mapa, Affleck tentando lembrar o caminho que percorreram). Seus corpos se des-diferenciando em relação à paisagem e quase engatinhando (a marcha deles vai progressivamente tornando-se lenta, à medida que os pensamentos se infantilizam), até não mais ser possível discernir esses corpos enquanto centros de ação guiados por certa necessidade e por certo conhecimento. O deserto os obriga a interrogar os sentidos, a reconfigurar as dimensões do espaço exterior a partir das dimensões e prioridades do próprio corpo (como na infância da consciência). Matt Damon calha de reencontrar a estrada no justo ponto em que seu organismo estava prestes a falhar – mas o som dos carros o faz perceber que está perto. Se a percepção tem sua verdadeira razão de ser na tendência motora do corpo (Bergson), é bastante curioso que os personagens de Gerry, praticamente abandonados à "percepção pura", passem o filme inteiro arrumando o que fazer, ora em resposta a uma necessidade (ir à procura de água, tentar achar a estrada, descer de uma pedra alta), ora simplesmente edulcorando um tempo morto com brincadeiras ou inventando histórias. O que cabe aos dois personagens de Gerry, perdidos que estão, é desvendar o espaço e insuflar o tempo. O próprio som do filme corresponde a essa estratégia de preenchimento; todos os detalhes se tornam relevantes e ganham volume: os passos no solo árido, o vento, as vozes ecoantes, toda a paisagem sonora construída e captada, tudo é valorizado de modo a não sobrar vazio na pista de som.

Não é privilégio de Gerry esse interesse pelas coisas todas que o envolvem. O Pântano e Encontros e Desencontros, para citar dois filmes que passaram nos cinemas brasileiros este ano, alcançam uma extraordinária investigação do espaço e das relações entre as pessoas que o ocupam. É com o pretexto do tédio e da falta do que fazer que Bill Murray e Scarlett Johansson resolvem desbravar Tóquio em companhia um do outro, e suas perambulações destacam o cenário específico da cidade. É por contrapor diferenças tão bem marcadas à falta de uma motivação nas ações (a ausência de um vetor de causalidade) que as porções de espaço-tempo em O Pantâno são preenchidas com tamanha e latente violência – a abertura que o filme faz para a ambigüidade e a circunstancialidade imanentes ao momento presenciado é tão grande, que a situação em si (o conjunto de fatos brutos, sem lapidação) se torna violenta. Todo o filme de Lucrecia Martel se banha na substância pegajosa de sua paisagem-título: os personagens se encostam e se afastam como um deslizar natural de corpos que ocupam o mesmo recipiente (com a devida pressão inserida nele).

A personagem de Eternamente Sua (Blissfully Yours, de Apichatpong Weerasethakul, obra-prima exibida no Festival do Rio de 2002) que forja um atestado médico para conseguir dispensa no trabalho e passar a tarde ao lado do namorado está tão-somente criando um tempo livre, que deverá ser aproveitado com nada mais (nem nada menos) que vida, com o passeio bucólico ao paraíso que o filme – e, conseqüentemente, o espectador – desvela no seio de uma floresta da Tailândia. O filme nos passa a sensação de escoamento de tempo como raramente se vê: na sua última hora, o tempo de metragem praticamente bate com o tempo diegético (mas não é um tempo pesado, tarkovskiano, e sim um tempo leve e fugidio). Apichatpong ainda dedica uns vinte minutos à mise en scène do sono (evocando a experiência warholiana, mas trabalhando estética e narrativamente diferente), quando seus personagens deitam à beira do rio para descansar. É mostrada uma sucessão de planos em que os corpos são recortados de forma precisa pelo enquadramento, sendo justapostos a outros planos em que eles aparecem ao longe, rodeados pela natureza. Essa seqüência, definitivamente antológica, organiza as superfícies e as intensidades luminosas através de ritmos visuais que conjugam plástica e temporalidade na medida em que colaboram com a duração específica do espaço e, conseqüentemente, dos corpos que a ele se integram. Os sons da floresta e do rio que corre ao lado se tornam mais audíveis que em qualquer outra passagem do filme.

Pouco antes do término de Eternamente Sua, como que para coroar a obra-prima, há um plano com a câmera apontada para o céu, onde o sol acha brecha entre as nuvens e copas de árvores: aguardou-se pelo acontecimento da luz. Assim como O Pântano, Eternamente Sua não se furta à perscrutação de uma paisagem específica (mais delimitada no filme de Apichatpong, e mais espacialmente complexa no de Martel – uma vez que ela articula também um tecido social focado em vários núcleos) e à pesquisa sensorial em torno dela. Trata-se, num caso ou no outro, de um cinema em que o pano de fundo se descola e migra para a superfície, e em que a luz de preenchimento se torna a própria luz do filme. O cineasta constrói paisagens visuais e sonoras muito particulares, corroborando atmosferas locais, incrementando a sensibilidade do material, quase que inventando imagens táteis. Em Eternamente Sua, chegamos muito perto de sentir a pele em contato com o mato e com as formigas vermelhas. O Pântano ressalta texturas e estados físicos das coisas como a nos querer oferecer as imagens também ao tato. Shara (de Naomi Kawase, um dos cinco maiores destaques do Festival do Rio do ano passado) quase nos molha com a chuva abrupta na cena do desfile.

É, em grande medida, a capacidade de imersão e de incitação a uma experiência hipnótica o que o cinema está aprimorando através desses filmes. As paisagens ultrapassam os personagens e, ao mesmo tempo, escapam ao campo de visão do cineasta. A cidade que absorve o estrangeiro nas suas luzes e nos seus sons (Encontros e Desencontros), o deserto que engolfa seus visitantes (Gerry), a floresta que abriga placidamente um casal em tarde de folga (Eternamente Sua), o solo movediço que desfaz e refaz a distância entre aqueles que o pisam (O Pântano), a estrada sem fim que serve de palco para o travelogue sentimental e intimista de Vincent Gallo (The Brown Bunny). Da continuidade da obra desses cineastas (em sua maioria, pertencentes a uma geração que começou a filmar da segunda metade dos anos 90 para cá), no mínimo os novos filmes de Apichatpong Weerasethakul (Mal dos Trópicos) e Lucrecia Martel (Santa Menina) o Festival do Rio deste ano já nos dá a chance de ver. Mais do que imperdível.

Luiz Carlos Oliveira Jr.
Contracampo




Um texto que me moveu bastante. Entrei em contato com várias questões pela primeira vez. Me aproximou de muitos autores eternos. Grata!

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