14.6.10

   Latest tracks by golfinhos

Descrição de uma Luta, F. kafka


E pessoas com roupas domingueiras
Passeiam, de lá para cá, sobre o cascalho
Sob este céu imenso
Que, das colinas na distância, 
Estende-se para as colinas distantes

Perto da meia-noite, algumas pessoas se levantaram, inclinaram-se, trocaram apertos de mãos, disseram que tinha sido uma noite agradável e, pela porta larga, passaram ao saguão para vestir seus agasalhos. A anfitriã ficou no centro da sala, repetindo pequenas mesuras que faziam as pregas delicadas da sua saia moverem-se para cima e para baixo.

Eu estava sentado a uma mesinha -três pernas finas e curvas- bebericando meu terceiro copo de bénédistine e, enquanto bebia, examinava a pequena coleção de doces que eu tinha escolhido e arrumado em pilha.
Então vi surgir na porta que dava para a sala ao lado o homem que havia conhecido. tentei desviar a vista, pois nada tinha a ver com ele. mas o homem caminhou na minha direção e, sorrindo com ar vago ao ver o que eu fazia, disse:

- Perdoe-me incomodá-lo, mas estive até agora sozinho com minha namorada na sala ao lado. desde as dez e meia. meu Deus, que noite! Sei que não é direito estar-lhe dizendo isto, pois mal nos conhecemos. Apenas nos encontramos na escada, no começo da noite, e trocamos algumas palavras, como fazem convidados de uma festa. E agora... mas por favor, perdoe-me... não posso me conter, de tanta felicidade, não consigo. E como não conheço mais ninguém aqui em quem possa confiar...

Olhei para ele tristemente - o bolo de frutas que tinha na boca não era muito bom- e disse àquele rosto afogueado:

- Naturalmente me alegro por me considerar digno de sua confiança, mas desagrada-me o fato de me fazer confidências. E você mesmo, se não estivesse nesse estado, reconheceria que não é próprio falar sobre uma mulher apaixonada a um homem que está sentado sozinho, tomando uma bebida.

Quando disse isso, ele se sentou com um movimento brusco e inclinou-se na cadeira para trás, com os braços estendidos para baixo. Depois, levou-os às costas, os cotovelos em ângulo, e disse, em voz bastante alta:

- Há poucos minutos estávamos sozinhos, naquela sala, Annie e eu. E eu a beijei, beijei... beijei-lhe a boca, as orelha, os ombros. Ó meu Deus e Salvador!

 Alguns convidados, achando que nossa conversa se animava, aproximaram-se, bocejando. Percebendo isso, fiquei de pé e disse, em voz alta, de maneira que todos ouvisse:

- Muito bem, se insiste eu vou com você, mas repito: é ridículo escalar o Laurenziberg agora, no inverno e no meio da noite. Além disso, está gelado e as estradas devem estar lisas como um rinque de patinação. Se você quer, porém...

A princípio, ele me olhou espantado, como os lábios úmidos entreabertos. Mas , percebendo os convidados, agora muito próximos, riu, levantou-se e disse:

- Acho que o frio nos fará bem, nossas roupas estão impregnadas de calor e fumaça. Além disso, estou meio tonto por ter bebido demais. Sim, vamos nos despedir e partir.

Assim, dirigimo-nos à anfitriã e, quando ele beijou sua mão, ela observou:

- Fico satisfeita por vê-lo hoje tão feliz.

Comovido com a bondade dessas palavras, ele novamente beijou-lhe a mão. Nossa anfitriã sorriu. Tive de afastá-lo à orça. No vestíbulo esperava-nos uma criada que ainda não tínhamos visto. Ajudou-nos a vestir os sobretudos e apanhou um pequeno lampião para nos guiar nas escadas. A moça tinha pescoço nu, exceto por uma estreita fita de veludo. Com o corpo inclinado, distendia-se sob a roupa larga enquanto descia a escada à nossa frente, segurando o lampião bem perto dos degraus. Tinha o rosto ainda corado de vinho e, à luz precária que iluminava o corrimão, eu podia ver os seus lábios trêmulos.

Quando acabamos de descer, ela colocou o lampião no chão, deu um passo para o meu novo conhecido, abraçou-o, beijou-o e continuou abraçada. Só quando coloquei um a moeda em sua mão soltou os braços sonolentamente, abriu a porta devagar e deixou-nos sair para a noite.

Pedestres

andantes