30.9.09

Documentário

Um encontro em ocasião do Brasil Documenta, 2002. A Contracampo representada por Felipe Bragança reportou na época. O link da postagem original.


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Maysles X Coutinho: como fazer um documentário?

Certamente as voltas na espiral já estão além e se há retorno a esse ponto, diga-se que o ponto já não é mais o mesmo: porque se já é dada a perda da crença na captura e/ou representação direta de uma verdade, quais as formas de transcrever essa ironia saudável aos olhos do espectador? Pois sim, já que estamos reunidos como estetas que somos, não podem nos ser suficientes as consciências. Trata-se de um desafio reinventado de estética, tratar da descrença numa realidade direta sem fazer desse distanciamento o conteúdo monótono de nossas imagens.
Nesse movimento, Albert Maysles e Eduardo Coutinho são personagens paradigmáticos. Presentes no Debate sobre Estética e Mercado, os dois mestres logo descartam a temática proposta e partem para um emocionante duelo de esgrima, de argumentos finos. Golpes discretos. Um momento de rara beleza.

Para quê fazer um documentário?

Para o veterano cineasta Albert Maysles (diretor dos marcantes Gimme Shelter e Grey Gardens) a resposta é direta: Para encontrar a realidade das pessoas. O cinema documentário de Albert e seu irmão David Maysles só tem sentido se caracterizado pela aventura e pela descoberta."The real thing", sublinha Maysles. Descolada de uma verdade única moral, essa "coisa real" seria um retrato efêmero e íntimo da própria essência de seus personagens, uma verdade íntima capturada pela câmera e somente por ela. O cinema documental seria justamente não aquele que apresenta uma verdade ditada em off ou uma tese pré-fabricada, mas aquele em que a emergência da "coisa real" se faria presente e eternizada pelo fotograma. Não uma Verdade Moral, mas a Vida Verdadeira, cotidiana de seus personagens.

Quando Coutinho interrompe, dizendo que o quê justamente Não interessa a seu cinema é "encontrar a realidade" de seus personagens, mas as suas histórias imaginárias, Maysles se agita na cadeira: "I don’t get it! Porque não trabalhar com atores?" – pergunta.

Coutinho aprofunda-se em sua proposta: Para o diretor de Santo Forte e Ed
ifício Máster, somente na participação ativa do documentarista poderia ser criada uma efemeridade autêntica em forma de filme. Coutinho cita a obra de Erwing Goffman, a Representação do Eu na Vida Cotidiana como um referencial central de sua postura: Não há um eu verdadeiro senão aquele representado diante de diversas situações sociais. Para Coutinho a situação-filme tem suas particularidades que impediriam qualquer pretensão de que a "coisa real" fosse "capturada". Coutinho se interessa pelo jogo. E provoca: Para ele o melhor filme de Albert e David Maysles é justamente Grey Gardens: "Por ser o único filme em que os irmãos Maysles se deixam mostrar na tela através de um reflexo no espelho".

Mayles se incomoda. Se ajeita na cadeira. Retruca lembrando que isso foi feito em função de uma demanda direta das personagens, que insistiam em falar e empurrar os cineastas: "Consideramos que seria falso não dar ao público a informação direta dessa atitude da personagem". Maysles vai mais fundo: "I hate the work of Michael Moore!" Para Albert Maysles, o cineasta norte-americano responsável por polêmicos filmes-denúncia (o premiado Bowling for Columbine, por exemplo) é um "ditador" e um "covarde", que se faz personagem de seus próprios filmes para manipular seus personagens e faze-los servir à sua tese pré-estabelecida. "Moore não tem a coragem de se aventurar".

Coutinho recebe a provocação indireta com cautela: delimita dois tipos básicos de documentários surgidos na TV: o telejornalismo "imparcial" e os filmes em que o repórter/diretor se mostra como uma estrela. A diferença é que esse segundo modelo sempre apostaria num certo "heroísmo narcisista" do diretor/repórter, o que, definitivamente, não seria o objetivo de seu cinema. Coutinho lembra que a interação direta de seus filmes não são manipulações morais ou comprovações de teses – seu cinema funciona justamente para que os personagens e o diretor possam se lançar livremente na efemeridade do encontro. A aventura de Coutinho seria por dentro do imaginário verbalizado dos personagens, e não numa suposta "realidade direta" das imagens. Coutinho lembra que permite que seus personagens escolham onde e como querem dar seus depoimentos e não demanda de seus atores nada além de uma boa história, "seja ela mentira ou verdade". "Pois a sua mentira será sempre um valor mais íntimo daquela pessoa, do que a minha suposição sobre a realidade dela". Se Michael Moore quer mudar o mundo ou provar uma tese, Coutinho parece apenas querer praticar seu método geométrico de interação, numa invenção imagética das vontades e sonhos de seus personagens – onde a mudança de mundo é a da própria prática da criação.

Maysles se incomoda mais uma vez: "Eu não entendo! Acredito que meus filmes possam mudar o mundo.Essa á função dos documentários..." Não pela demonstração de uma tese fechada, mas através de um contato imagético direto com a vida de pessoas e lugares que nunca poderíamos conhecer se não fossem os documentários. "Por exemplo, hoje, no meu país: somente um bom documentário poderia evitar o ataque ao Iraque!".

Coutinho resmunga alguma coisa. Maysles olha de lado. Silêncio...

O duelo se interrompe assim: Mayles inquieto, afoito pela aventura. Para o cinema dele e de seu irmão David, a realidade cheia de máscaras se fragiliza diante da câmera. Acaba se deixando escapar, desnudar sua "coisa real". Para o cinema de Eduardo Coutinho as máscaras também estão ali. São inegáveis. Mas sob elas, Coutinho não vê a realidade, não vê uma brecha. Apenas mais e mais máscaras se entrecruzando. Numa autêntica representação de si mesmas.
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28.9.09

Almoço em Cracóvia

O homem sentou-se à mesa, esfomeado. A mesa, por seu lado, não comia há várias horas e sentia uma pontinha de fome, por assim dizer, um bocadinho aborrecida. O que fazer? O caso afigurava-se de difícil resolução. Por fim, ambos concordaram num desfecho simples e agradável. A mesa comeu o homem e guardou ainda alguns ossinhos para o jantar.

17.9.09

Um plano sem imagem ou duas imagens num plano?
... (A Rampa)

O cinema seria aquilo que permite romper o encantamento pelo qual pensamos ver ao redor de nós algo além do humano, quando se trata apenas de campos de plantio, árvores podadas, cemitérios ignorados, animais-que-são-talvez-homens (por isso a proibição de matá-los). Humanismo velho-marxista também, no sentido em que Brecht dizia que uma foto das fábricas Krupp não nos ensinava nada sobre as fábricas Krupp. O que falta? O trabalho dos homens e os homens no trabalho. E o que há para entender? Sempre a mesma coisa: os homens criam os deuses (ou os operários, os patrões; os atores, os espectadores) e em troca os deuses os despossuem de seu mundo, os transformam em estrangeiros para eles, os alienam. Por que se trata de fato de alienação e de reapropriação, de experiência e de má consciência, de toda uma problemática existencialista à qual se liga o cinema dos Straub. Entendemos subitamente seu horror pelas categorias estáticas prontas: achar “belo” o plano de uma paisagem é, no limite, uma blasfêmia, porque um plano, uma paisagem, no final das contas, é alguém. Somente há beleza na moral. Não se trata de antropomorfismo. Há a pregnância da figura humana, mas nunca o contrário. Se considerarmos que um cineasta é importante apenas na medida em que ele estuda, a cada filme, um certo estado do corpo humano,os filmes de Straub permanecerão como documentários sobre duas ou três posições do corpo: estar sentado, inclinar-se para ler, andar. E já é muito.
Contra o espetáculo. Mas qual espetáculo?

(...) É pois uma única e mesma coisa, a infelicidade dos homens e sua transformação em objetos de prazer estético para os deuses em pleno lazer. Claro, os deuses são também os patrões, os espectadores – todos esses que não trabalham. E resistir a eles é de início recusar-se a ser olhado. É, por exemplo, dar-lhes as costas.

Recusa do espetáculo, afronta feita ao espectador-deus, essa criança mimada. Para descrever os deuses a Ixíon, Néfele diz: “Eles tateiam de longe, com os olhos, as narinas, os lábios”. A fabricação do plano straubiano está inteiramente numa prática do enquadramento que rompe com essa distância, que ensina a “olhar de perto”, que deforma o espaço homogêneo de contemplação paranóica por onde os deuses-espectadores destituem os homens (os atores) de sua infelicidade e por onde os homens, para satisfazê-los, tornam-se palhaços de sua condição, transformada em destino. É essa recusa de um mundo anterior, de um plano anterior, que defere a Dalla nube essa sensualidade imediata, patética, onde a lembrança de um mundo “onde estamos em casa”, de uma intimidade com as coisas, deve ser confiada aos sentidos mais ligados à periferia do corpo – à audição, ao tato. Não ao olhar.
Separações Néfele, a nuvem, sentada em sua árvore, anuncia a Iníon. "Existem monstros", diz ela. A partir desse momento aqueles que - como os centauros - participam de uma dupla natureza sabem que são monstros e se escondem.
Serge Daney, A Rampa.
Sobre Dalla Nube Alla Resistenza, dos Straubs (tá. EU gosto de chamar o casal assim, pois. um carinho)

16.9.09

O que tem me interessado muito:


UMA VISITA AO LOUVRE
Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, Une Visite au Louvre, França/Alemanha/Itália, 2004


Em Uma Visita ao Louvre, Straub e Huillet – os raios ultravioleta do cinema moderno, segundo Pascal Bonitzer (Godard seria o infravermelho) – continuam tencionando o cinema em suas camadas geológicas mais profundas, mais antigas. Através do que Bonitzer designou como “efeito de sobrecultura”, eles refazem a “correnteza” do cinema retomando o que este havia recalcado (teatro, ópera, pintura...). Nos últimos anos, a matriz principal vem sendo a riquíssima obra literária de Elio Vittorini – mas a verdade é que um filme como Gente da Sicília deve a Vittorini tanto quanto deve a Cézanne. Uma Visita ao Louvre é, portanto, menos um intervalo do que a parte integrante de um processo ininterrupto. Quase todo o filme consiste em quadros de grandes pintores, pertencentes ao acervo do Louvre, filmados em tomadas fixas, imóveis. Há também um plano descritivo da fachada do museu no início, um plano de uma árvore com suas folhas balançando ao vento no meio e o plano final, uma lenta e longa panorâmica em meio ao verde de uma floresta. E há as telas pretas, em pequeno número, porém profundamente perturbadoras. Percorrendo todas as imagens, uma voz off feminina, serena e perplexa ao mesmo tempo, alternando a calmaria da contemplação solicitada pelos quadros à tempestade da visão que percebe o traço, o pensamento, a vida do pintor sendo posta em obra. Essa voz feminina “representa” Cézanne.

... Straub e Huillet dotam o cinema de um efeito Moebius: as pistas de imagem e de som se dobram uma sobre a outra, sem aquisição de recursos retóricos, e sem achatamento mútuo. Uma Visita ao Louvre leva esse efeito ao limite, estruturando-se não em cenas ou em temas, mas em blocos de imagem-som. Uma tela pintada à nossa frente, enquadrada de forma extremamente simples, e no som apenas a “trilha de comentários” sobre o que estamos vendo: assim é o filme. E não se trata de fechar o campo visual do cinema, de submetê-lo ou de confrontá-lo ao espaço da pintura. Tampouco de fetichizar essas telas dentro da tela, esses não-planos dos quais a voz em off nos convence da sedução. O que acontece é antes uma abertura do espaço cinematográfico ao infinito: liberto da necessidade de mostrar o movimento, é o próprio quadro (cinematográfico, mas também pictórico) que assume mobilidade, uma estranha potência de auto-decomposição. Os quadros se esmigalham na nossa frente, enquanto o cinema, a imagem-som ligada em bloco, restitui a unidade das pinturas. A voz off analisa, investiga os quadros, mas não assistimos a uma operação de desconstrução. Os planos do filme instauram uma atividade no quadro pictórico, uma atividade que se traduz na obra se refazendo diante de nós, o próprio processo, a própria pincelada se re-atualizando (o oposto absoluto da desconstrução). Nos melhores momentos de Uma Visita ao Louvre, somos tomados pelo êxtase e pelo suspense da narração, que conduz uma busca incessante ao visível e ao invisível das obras filmadas. Uma tentativa de sentir as cores e também de entender o contexto (histórico, religioso, artístico, econômico) em que este ou aquele signo se materializou – em última análise, uma busca pelo fora-de-campo das obras.

A secura e a frontalidade reinam no filme como princípio de enquadramento e composição. Nada de pontos de vista oblíquos: não existe necessidade de introduzir o sentimento de movimento e a noção de tempo; estes são dados concretos. Fugindo da expressividade fácil, Straub e Huillet põem o olho do espectador em trabalho, em ação: um olho crítico que precisa “decupar” a imagem por meio de seu investimento intelectual. Cada plano do filme é um sobrequadro (o plano do pintor e o plano do cineasta), é um encontro, ou o relato de um encontro. O filme acaba sendo uma forma de estetizar a duração, de desfazer a medida do tempo para torná-lo matéria comparável à tela e à tinta do pintor (se isso é tarefa do cinema como um todo? de uma só vez: não), e de nos convencer de que aqueles quadros pendurados nas paredes do Louvre estão vivos. Nem assombrações nem fantasmas nem alucinações: vivos.


Luiz Carlos Oliveira Jr.
Contracampo

Acho que estou num transitar do antes ao depois de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub.
Que maravilhas, só maravilhas.

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