16.12.11

Quando estiveres na cama e ouvires o uivar dos cães no campo, esconde-te debaixo dos cobertores, não te rias do que eles fazem; eles têm sede insaciável de infinito, como tu, como eu, como os restantes humanos, de rosto pálido e comprido.
In Cantos de Maldoror, de Isidore Ducassé

1.5.11

Um pedaço de Bukowski

Das 5 irmãs, Cass era a mais moça e a mais bela. E a mais linda mulher da cidade. Mestiça de índia, de corpo flexível, estranho, sinuoso que nem cobra e fogoso como os olhos: um fogaréu vivo ambulante. Espírito impaciente para romper o molde incapaz de retê-lo. Os cabelos pretos, longos e sedosos, ondulavam e balançavam ao andar. Sempre muito animada ou então deprimida, com Cass não havia esse negócio de meio termo. Segundo alguns, era louca. Opinião de apáticos. Que jamais poderiam compreendê-la. Para os homens, parecia apenas uma máquina de fazer sexo e pouco estavam ligando para a possibilidade de que fosse maluca. E passava a vida a dançar, a namorar e beijar. Mas, salvo raras exceções, na hora agá sempre encontrava forma de sumir e deixar todo mundo na mão.
As irmãs a acusavam de desperdiçar sua beleza, de falta de tino; só que Cass não era boba e sabia muito bem o que queria: pintava, dançava, cantava, dedicava-se a trabalhos de argila e, quando alguém se feria, na carne ou no espírito, a pena que sentia era uma coisa vinda do fundo da alma. A mentalidade é que simplesmente destoava das demais: nada tinha de prática. Quando seus namorados ficavam atraídos por ela, as irmãs se enciumavam e se enfureciam, achando que não sabia aproveitá-los como mereciam. Costumava mostrar-se boazinha com os feios e revoltava-se contra os considerados bonitos – “uns frouxos”, dizia, “sem graça nenhuma. Pensam que basta ter orelhinhas perfeitas e nariz bem modelado... Tudo por fora e nada por dentro...” Quando perdia a paciência, chegava às raias da loucura; tinha um gênio que alguns qualificavam de insanidade mental.
O pai havia morrido alcoólatra e a mãe fugira de casa, abandonando as filhas. As meninas procuraram um parente, que resolveu interná-las num convento. Experiência nada interessante, sobretudo para Cass. As colegas eram muito ciumentas e teve que brigar com a maioria. Trazia marcas de lâmina de gilete por todo o braço esquerdo, de tanto se defender durante suas brigas. Guardava, inclusive, uma cicatriz indelével na face esquerda, que em vez de empanar-lhe a beleza só servia para realçá-la.
Conheci Cass uma noite no West End Bar. Fazia vários dias que tinha saído do convento. Por ser a caçula entre as irmãs, fora a última a sair. Simplesmente entrou e sentou do meu lado. Eu era provavelmente o homem mais feio da cidade – o que bem pode ter contribuído.
– Quer um drinque? – perguntei.
– Claro, por que não?
Não creio que houvesse nada de especial na conversa que tivemos essa noite. Foi mais a impressão que causava. Tinha me escolhido e ponto final. Sem a menor coação. Gostou da bebida e tomou várias doses. Não parecia ser de maior idade, mas, não sei como, ninguém se recusava a servi-la. Talvez tivesse carteira de identidade falsa, sei lá. O certo é que toda vez que voltava do toalete para sentar do meu lado, me dava uma pontada de orgulho. Não só era a mais linda mulher da cidade como também das mais belas que vi em toda a minha vida. Passei-lhe o braço pela cintura e dei-lhe um beijo.
– Me acha bonita? – perguntou.
– Lógico que acho, mas não é só isso... é mais que uma simples questão de beleza...
– As pessoas sempre me acusam de ser bonita. Acha mesmo que eu sou?
– Bonita não é bem o termo, e nem te faz justiça.
Cass meteu a mão na bolsa. Julguei que estivesse procurando um lenço. Mas tirou um longo grampo de chapéu. Antes que pudesse impedir, já tinha espetado o tal grampo, de lado, na ponta do nariz. Senti asco e horror.
Ela me olhou e riu.
– E agora, ainda me acha bonita? O que é que você acha agora, cara?
Puxei o grampo, estancando o sangue com o lenço que trazia no bolso. Diversas pessoas, inclusive o sujeito que atendia no balcão, tinham assistido à cena. Ele veio até a mesa:
– Olha – disse para Cass, – se fizer isso de novo, vai ter que dar o fora. Aqui ninguém gosta de drama.
– Ah, vai te foder, cara!
– É melhor não dar mais bebida pra ela – aconselhou o sujeito.
– Não tem perigo – prometi.
– O nariz é meu – protestou Cass, – faço dele o que bem entendo.
– Não faz, não – retruquei, – porque isso me dói.
– Quer dizer que eu cravo o grampo no nariz e você é que sente dor?
– Sinto, sim. Palavra.
– Está bem, pode deixar que eu não cravo mais. Fica sossegado.
Me beijou, ainda sorrindo e com o lenço encostado no nariz. Na hora de fechar o bar, fomos para onde eu morava. Tinha um pouco de cerveja na geladeira e ficamos lá sentados, conversando. E só então percebi que estava diante de uma criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traía sem se dar conta. Ao mesmo tempo que se encolhia numa mistura de insensatez e incoerência. Uma verdadeira preciosidade. Uma jóia, linda e espiritual. Talvez algum homem, uma coisa qualquer, um dia a destruísse para sempre. Fiquei torcendo para que não fosse eu.

(Charles Bukowski. “A mulher mais linda da cidade”. A mulher mais linda da cidade e outras histórias. Trad. Albino Poly Jr. Porto Alegre, L&PM, 1996.)

12.4.11

Uma forma cómoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Quer dizer que as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessam-se principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, conforme sua própria expressão, em fazer negócios. Naturalmente, apreciam prazeres simples, gostam das mulheres, de cinema e de banhos de mar. Muito sensatamente, porém, reservam os prazeres para os domingos e os sábados à noite, procurando, nos outros dias da semana, ganhar muito dinheiro. À tarde, quando saem dos escritórios, reúnem-se a uma hora fixa nos cafés, passeiam na mesma avenida ou instalam-se nas suas varandas. Os desejos dos mais velhos não vão além das associações de boulomanes [1], os banquetes das amicales [2] e os ambientes em que se aposta alto no jogo de cartas.
Dirão sem dúvida que nada disso é característico de nossa cidade e que, em suma, todos os nossos contemporâneos são assim. Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por perder nas cartas, no café e em tagarelices o tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes modifica a vida. Simplesmente, houve a suspeita, o que já significa algo. Oran, pelo contrário, é uma cidade aparentemente sem suspeitas, quer dizer, uma cidade inteiramente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois. Isso tampouco é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.
_______





[1] Neologismo que designa os entusiastas de jogo muito popular na frança. (N. do T.)

[2] Nome das associações formadas por membros do ensino, etc. (N. do T.)

Excerto de A Peste, Albert Camus.

16.3.11

Por cima do abismo dos séculos, o espírito contra suas relações com os destroços pulverizados, anima o organismo inteiro de uma existência imaginária, mas presente em nossa emoção. É o testemunho magnífico da importância humana da arte, gravando o esforço de nossa inteligência nas camadas da terra, tal como as ossadas aí depositam os vestígios da ascensão dos nossos órgãos materiais. Realizar a unidade no espírito e transportá-la para a obra é obedecer a essa necessidade de ordem geral e duradoura que nosso universo nos impõe e que o cientista exprime pela lei da continuidade, o artista pela lei da harmonia, o justo pela lei da solidariedade. 


 Esses três instrumentos essenciais de nossa adaptação humana - a ciência que define as relações do fato com o fato, a arte que sugere as relações do fato com o homem, a moral que busca as relações do homem com o homem - estabelecem para nosso uso, de uma ponta à outra do mundo material e espiritual, um sistema de relações cuja lógica nos será demonstrada pela permanência e pela utilidade. Eles nos ensinam o que nos serve e o que nos prejudica. O resto nos importa pouco. Não existe erro, verdade, feiúra, beleza, mal ou bem, fora do uso humano que queiramos fazer desses conceitos. A missão de nossa sensibilidade, de nossa inteligência pessoal, consiste em estabelecer-lhes o valor, buscando as passagens misteriosas de um para o outro, que nos permitirão abarcar toda a continuidade do nosso esforço, a fim de tudo compreender e de tudo aceitar dele. Será esse o melhor meio de utilizar pouco a pouco o que chamamos de erro, feiúra e mal, com vistas a uma educação mais elevada, e de realizar em nós a harmonia, a fim de difundi-la à nossa volta. 


 A harmonia é uma lei de ordem profunda que remonta à unidade primordial e cujo desejo nos é imposto pela mais geral e mais imperiosa de todas as realidades. As formas que vemos só vivem pelas transições que as unem e por meio das quais o espírito humano pode retornar à fonte comum, tal como pode seguir a corrente nutritiva da seiva a partir das flores e das folhas para remontar até as raízes. Vejam uma paisagem estender-se até a linha do horizonte. Uma planície coberta de ervas, de tufos de árvores, um rio que corre para o mar, estradas orladas de casas, aldeias, animais errantes, homens, um céu repleto de luz ou de nuvens. Os homens alimentam-se com os frutos das árvores, com a carne e o leite dos animais que os vestem com suas peles e seus couros. Os animais vivem da relva, das folhas, e se a relva e as folhas crescem, é porque o céu toma dos mares e dos rios a água que derrama sobre elas. Nem nascimento, nem morte, a vida permanente e confusa. Todos os aspectos da matéria se interpenetram, a energia geral flui e reflui, floresce a todo instante para murchar e reflorescer em metamorfoses sem fim, a sinfonia das cores e a sinfonia dos murmúrios quase nada mais são do que o perfume da sinfonia interior feita da circulação das forças na continuidade das formas. O artista chega, apreende a lei universal e entrega-nos um mundo completo cujos elementos caracterizados por suas relações principais participam sem exceção da realização harmoniosa do conjunto de suas funções.

17.10.10

O que é a Democracia?

O Que é a Democracia?

A democracia não é apenas o regime formal da lei e da ordem. O que caracteriza a democracia e faz ela diferente de todos os regimes políticos é que ela é a CRIAÇÃO DE DIREITOS, a CONSOLIDAÇÃO e a GARANTIA DE DIREITOS.

Quando nós tomamos o governo Lula, o que é que nós vemos? Nós vemos justamente a criação de direitos, o acesso à cidadania, o acesso aos direitos de milhões de brasileiros que estavam excluídos. Os programas sociais fizeram com que os direitos sociais, econômicos e culturais fossem garantidos para todos os cidadãos brasileiros.

A democracia, na medida em que ela cria direitos, ela exige que um país seja reconhecido pela sua estabilidade interna, pela capacidade de sua economia, de assegurar a tranquilidade dos seus cidadãos.

O que foi a politica econômica do governo lula? Foi exatamente isso. Que nos permitiu atravessar uma crise que abalou o mundo inteiro e que não nos atingiu.

E um GOVERNO DEMOCRÁTICO é aquele que garante também o direito da nação de aparecer como autônoma, independente, falando de igual para igual com as grandes potências mundiais.

Nós estávamos acostumados com um Brasil SUBMISSO, um Brasil que obedecia a ordens da Europa, ordens dos Estados Unidos. O que é que nós temos agora? Um Brasil que tem os seus direitos internacionais afirmados e garantidos.

Ora, diante dessa realização democrática, um governo impossível (impossível, improvável, jamais virá), mas se houvesse um governo Serra significaria a liquidação dessa democracia.

Por quê?

Comecemos pela questão dos direitos sociais e políticos.

O que é o que caracteriza uma politica neoliberal?

A gente fala do enxugamento do Estado e pensa sempre na privatização de empresas. É claro, como o Fernando Henrique declarou em público várias vezes, a alma da privatização da Vale do Rio Doce foi o Serra. E agora, podem ler no Valor Econômico, a pretensão deles de privatizar o Pré Sal.

Mas o mais grave nesse enxugamento do Estado é o que acontece com os Direitos Sociais. Por que o Estado deixa de ter responsabilidades sobre os direitos sociais, como a educação, como a saúde, transforma esses direitos em Serviços, e esses serviços pra serem vendidos e comprados no mercado. ISSO É A PRIVATIZAÇÃO DOS DIREITOS, a desaparição dos direitos sociais, dos direitos econômicos, dos direitos culturais, isso é uma destruição da democracia. E é isso o que ele representa. O Serra representa um Brasil internacionalmente submisso, um Brasil sem os direitos sociais, econômicos e culturais e um Brasil de privatização das coisas mais importantes que asseguram a nossa economia.

Não é possível admitir uma coisa dessas.

Marilena Chauí

fonte: http://www.youtube.com/watch?v=0j6jgDs7gMQ&feature=player_embedded

26.9.10

Estava lendo um apanhado, um belo apanhado, da obra do Pedro Costa, aqui, quando me deparei com um trecho de Poemas da Cabra, pqp!.


João Cabral de Melo Neto


Nas margens do Mediterrâneo
não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.

Nas margens do Mediterrâneo
Não se vê um palmo de pedra
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.

Ali, onde nenhuma linha
pode lembrar, porque mais doce,
o que até chega a parecer
suave serra de uma foice,

não se vê um palmo de terra
por mais pedra ou fera que seja,
que a cabra não tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra.
1
A cabra é negra. Mas seu negro
não é o negro do ébano douto
(que é quase azul) ou o negro rico
do jacarandá (mais bem roxo).

O negro da cabra é o negro
do preto, do pobre, do pouco.
Negro da poeira, que é cinzento.
Negro da ferrugem, que é fosco.

Negro do feio, às vezes branco.
Ou o negro do pardo, que é pardo.
disso que não chega a ter cor
ou perdeu toda cor no gasto.

É o negro da segunda classe.
Do inferior (que é sempre opaco).
Disso que não pode ter cor
porque em negro sai mais barato.
2
Se o negro quer dizer noturno
o negro da cabra é solar.
Não é o da cabra o negro noite.
É o negro de sol. Luminar.

Será o negro do queimado
mais que o negro da escuridão.
Negra é do sol que acumulou.
É o negro mais bem do carvão.

Não é o negro do macabro.
Negro funeral. Nem do luto.
Tampouco é o negro do mistério,
de braços cruzados, eunuco.

É mesmo o negro do carvão.
O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora:
negro de vida, não de morte.
    3
O negro da cabra é o negro
da natureza dela cabra.
Mesmo dessa que não é negra,
como a do Moxotó, que é clara.

O negro é o duro que há no fundo
da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra,
no fundo da pedra, metal.

O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo,

que é a da cabra, esse animal
de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.

4
Quem já encontrou uma cabra
que tivesse ritmos domésticos?
O grosso derrame do porco,
da vaca, do sono e de tédio?

Quem encontrou cabra que fosse
animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?

A cabra guarda todo o arisco,
rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pajem.

Viva demais para não ser,
quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.
5
A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.
6
Não é pelo vício da pedra,
por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.

A cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.
7
A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).

Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.

É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.

Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.
8
O núcleo de cabra é visível
por debaixo de muitas coisas.
Com a natureza da cabra
outras aprendem sua crosta.

Um núcleo de cabra é visível
em certos atributos roucos
que têm as coisas obrigadas
a fazer de seu corpo couro.

A fazer de seu couro sola,
a armar-se em couraças, escamas:
como se dá com certas coisas
e muitas condições humanas.

Os jumentos são animais
que muito aprenderam com a cabra.
O nordestino, convivendo-a,
fez-se de sua mesma casta.
9
O núcleo de cabra é visível
debaixo do homem do Nordeste.
Da cabra lhe vem o escarpado
e o estofo nervudo que o enche.

Se adivinha o núcleo de cabra
no jeito de existir, Cardozo,
que reponta sob seu gesto
como esqueleto sob o corpo.

E é outra ossatura mais forte
que o esqueleto comum, de todos;
debaixo do próprio esqueleto,
no fundo centro de seus ossos.

A cabra deu ao nordestino
esse esqueleto mais de dentro:
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento.
*
O Mediterrâneo é mar clássico,
com águas de mármore azul.
Em nada me lembra das águas
sem marca do rio Pajeú.

As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do Sertão, se existe,
a água corre despenteada.

As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres
não da piçarra do Sertão.

Mas não minto o Mediterrâneo
nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos da do Moxotó.

4.9.10

eram duas cadeiras tombadas lado a lado
um tecido branco cobria as pernas e os braços

25.8.10

do blog Passarim

 Os Filmes e a TV


(...)
Opiniões sobre filmes às vezes podem ser bastante parecidas entre si, mas cada um tem a liberdade de achar o que quiser. Desde que tenha visto. É aí que está a natureza da questão: tem que poder ver pra conhecer. Quem não quiser conhecer os filmes, tem todo o direito. Mas, até mesmo por tantos filmes serem feitos com uso de verbas públicas, é justo que as pessoas tenham o direito de ver essas produções.

Até para não continuarem a repetir a balela de que só são produzidos nos Brasil filmes em favelas e comédias televisivas. Na verdade, esses gêneros são os que conseguem encher as salas de cinema. Eu entendo que tenha muita gente que implique e esperneie, mas é o caso de prestar atenção a esse ponto: filmes de favela e comédias televisivas são o hype, são aquilo que tem obtido sucesso de público. Quem quiser saber como são os filmes produzidos no Brasil precisa ter curiosidade para ir um pouco além do que é hype.

E precisa ter chance para isso. Acho que posso falar que o panorama geral dos filmes é ruim, porque sempre vejo muitos, embora nunca consiga ver todas as produções brasileiras lançadas a cada ano. Normalmente, consigo ver algo em torno de metade desta produção, ou seja, uns quarenta filmes. Esse ano está sendo um pouco mais complicado, tenho visto menos filmes depois que o Bernardo nasceu, o que é natural. Mas há produções que eu gostaria que fossem exibidas na TV aberta só para eu ter a chance de vê-las mesmo. O filme mais recente do Andrea Tonacci, uma belezura chamada Benzedeiras de Minas, eu vi na TV Brasil. Tem filme bom que só não é exibido na TV por conta dessa herança que temos até hoje do patrimonialismo montado nos anos 70 e 80 nas TVs, algo que se alastra até mesmo nas emissoras públicas.

Acreditar que o problema da ausência dos filmes se deve à falta de qualidade é levar fé no argumento da turma da grana. Não é muito diferente do consumidor que vai ao mercado e, ao ver que só há produtos da mesma marca, ouve do comerciante que as outras marcas são todas ruins. Me perdoem a sinceridade, mas cair nisso é cair no conto do vigário. Os filmes brasileiros precisam passar na TV justamente para as pessoas poderem escolher se querem vê-los ou não. Hoje elas não têm alternativa: não é possível ver vários filmes produzidos em anos recentes. Enquanto isso, quem ligar a TV à tarde ou à noite pode ver cada coisa...

Porque essa é a conversa fundamental: mais que a qualidade dos filmes, é a qualidade e a diversidade da televisão. Falar mal dos filmes brasileiros é fácil, ainda mais sem precisar vê-los para isso - já há críticos de cinema especializados nesse procedimento. Isso é moleza. Quero ver é defender a programação da TV brasileira. Falar bem de um ou outro capítulo de novela, qualquer um faz. Mas eu só levo a sério o sujeito que for contra a exibição de filmes brasileiros na TV se ele tiver disposição para assistir a pelo menos um terço dos episódios de Malhação, ao programa "O poder sobrenatural da Fé", da Record, e aos programas de apresentadores como Gugu Liberato, Márcia Goldsmith ou Sônia Abrão. Alguém aí aguenta o rojão?

 

Muitos filmes brasileiros podem ser ruins, mas a programação da TV aberta é bem pior. E as pessoas só vão poder saber o que é bom ou ruim quando puderem ter acesso às produções. Enquanto isso não acontece, não vão poder conferir se o argumento dos donos do supermercado é verdadeiro ou não. Acredita quem quiser.
A Constituição afirma o contrário, e segue sendo desrespeitada. Mas acreditar que os donos do supermercado possam desrespeitar a constituição também é um direito garantido pela liberdade de opinião.

Seja como for, respeitando as discordâncias, eu insisto nos pontos que me parecem corretos. A constituição federal deve ser respeitada, a diversidade deve ser garantida através de programas independentes e regionais, as pessoas devem ter chances de poder ver os filmes feitos no país.
Espero que os próximos congressistas e administradores de emissoras públicas concordem com isso, embora a tradição não ajude a nutrir esperanças.


Daniel Caetano

14.6.10

   Latest tracks by golfinhos

Descrição de uma Luta, F. kafka


E pessoas com roupas domingueiras
Passeiam, de lá para cá, sobre o cascalho
Sob este céu imenso
Que, das colinas na distância, 
Estende-se para as colinas distantes

Perto da meia-noite, algumas pessoas se levantaram, inclinaram-se, trocaram apertos de mãos, disseram que tinha sido uma noite agradável e, pela porta larga, passaram ao saguão para vestir seus agasalhos. A anfitriã ficou no centro da sala, repetindo pequenas mesuras que faziam as pregas delicadas da sua saia moverem-se para cima e para baixo.

Eu estava sentado a uma mesinha -três pernas finas e curvas- bebericando meu terceiro copo de bénédistine e, enquanto bebia, examinava a pequena coleção de doces que eu tinha escolhido e arrumado em pilha.
Então vi surgir na porta que dava para a sala ao lado o homem que havia conhecido. tentei desviar a vista, pois nada tinha a ver com ele. mas o homem caminhou na minha direção e, sorrindo com ar vago ao ver o que eu fazia, disse:

- Perdoe-me incomodá-lo, mas estive até agora sozinho com minha namorada na sala ao lado. desde as dez e meia. meu Deus, que noite! Sei que não é direito estar-lhe dizendo isto, pois mal nos conhecemos. Apenas nos encontramos na escada, no começo da noite, e trocamos algumas palavras, como fazem convidados de uma festa. E agora... mas por favor, perdoe-me... não posso me conter, de tanta felicidade, não consigo. E como não conheço mais ninguém aqui em quem possa confiar...

Olhei para ele tristemente - o bolo de frutas que tinha na boca não era muito bom- e disse àquele rosto afogueado:

- Naturalmente me alegro por me considerar digno de sua confiança, mas desagrada-me o fato de me fazer confidências. E você mesmo, se não estivesse nesse estado, reconheceria que não é próprio falar sobre uma mulher apaixonada a um homem que está sentado sozinho, tomando uma bebida.

Quando disse isso, ele se sentou com um movimento brusco e inclinou-se na cadeira para trás, com os braços estendidos para baixo. Depois, levou-os às costas, os cotovelos em ângulo, e disse, em voz bastante alta:

- Há poucos minutos estávamos sozinhos, naquela sala, Annie e eu. E eu a beijei, beijei... beijei-lhe a boca, as orelha, os ombros. Ó meu Deus e Salvador!

 Alguns convidados, achando que nossa conversa se animava, aproximaram-se, bocejando. Percebendo isso, fiquei de pé e disse, em voz alta, de maneira que todos ouvisse:

- Muito bem, se insiste eu vou com você, mas repito: é ridículo escalar o Laurenziberg agora, no inverno e no meio da noite. Além disso, está gelado e as estradas devem estar lisas como um rinque de patinação. Se você quer, porém...

A princípio, ele me olhou espantado, como os lábios úmidos entreabertos. Mas , percebendo os convidados, agora muito próximos, riu, levantou-se e disse:

- Acho que o frio nos fará bem, nossas roupas estão impregnadas de calor e fumaça. Além disso, estou meio tonto por ter bebido demais. Sim, vamos nos despedir e partir.

Assim, dirigimo-nos à anfitriã e, quando ele beijou sua mão, ela observou:

- Fico satisfeita por vê-lo hoje tão feliz.

Comovido com a bondade dessas palavras, ele novamente beijou-lhe a mão. Nossa anfitriã sorriu. Tive de afastá-lo à orça. No vestíbulo esperava-nos uma criada que ainda não tínhamos visto. Ajudou-nos a vestir os sobretudos e apanhou um pequeno lampião para nos guiar nas escadas. A moça tinha pescoço nu, exceto por uma estreita fita de veludo. Com o corpo inclinado, distendia-se sob a roupa larga enquanto descia a escada à nossa frente, segurando o lampião bem perto dos degraus. Tinha o rosto ainda corado de vinho e, à luz precária que iluminava o corrimão, eu podia ver os seus lábios trêmulos.

Quando acabamos de descer, ela colocou o lampião no chão, deu um passo para o meu novo conhecido, abraçou-o, beijou-o e continuou abraçada. Só quando coloquei um a moeda em sua mão soltou os braços sonolentamente, abriu a porta devagar e deixou-nos sair para a noite.

22.5.10

sobre Um Cinema da Inércia, texto do Luiz Carlos de Oliveira Jr. pra Contracampo

 Anônimo disse...
texto muito bom. identifico esses diagnósticos dados e percebo o perigo que há. mas ao mesmo tempo tem uma coisa que me incomoda: os exemplos de vídeo experimental, cine-diário etc. são extremamente bobos. bolas de sabão? o conteúdo foi colocado no nível do ridículo em prol de uma tese. acho importante afirmar larry cohen e seus filmes baratos como lugar de resistência do plano, do cinema, mas acho bitolante ter que logo depois ridicularizar o que pode ser tb um lugar de criação, como o exemplo do brown bunny. ricardo pretti
2:12 PM
Blogger bruno andrade disse...
Acho que se trata menos do conteúdo ser colocado no nível do ridículo que um certo nível de ridículo ser detectado num conteúdo. Se o texto do Jr. peca por alguma coisa, seria menos por discernir esse grau de exagero e exacerbação nos usos destes procedimentos, quase protocolares hoje em dia, do "filme-vídeo-instalação-diário-ensaio-para-circular-festivais" (lamento ter que recorrer a um estereótipo tão grosseiro, mas é que muitos destes trabalhos se reduzem grosseiramente a estereótipos lamentáveis) que por não determinar, restringir ou nomear os maus usos destes procedimentos. E, estritamente falando em termos de estratégia crítica, não me parece que Jr. chega a cometer pecado algum: o ponto de partida é mesmo a condenação de um certo aparato, e para isso identifica-se no filme do Gallo a nítida concretização de uma criação bem sucedida. O texto não me parece "bitolante" na medida que ao filme do Gallo poderiam substituir ou seguir alguns trabalhos da Claire Denis, do Garrel, do Rousseau, um filme do Luc Moullet como Os Naufragos da D17 ou trabalhos como os do Nolot em Avant que j'oublie e do Vecchiali em Bareback - filmes que igualmente vão fundo "nos desdobramentos de seu(s) movimento(s) cíclico(s) de estagnação no presente" ou que também estão "intensa e imediatamente requisitado por experiências concretas" ao mesmo tempo que "desconectado(s) de tudo, da sociedade, das pessoas". Mas me parece muito mais importante, muito mais necessário e eficaz para um texto crítico a identificação de procedimentos a se criticar, para o bem e para o mal, que a menção a um grupo, seleto ou não, de títulos. Como leitor, posso escolher quais filmes adequar ao que Jr. descreveu - sou mais livre, menos cúmplice e portanto mais intelectualmente implicado e solicitado pelo texto. Que é o quê importa, enfim...

20.3.10

Só pra alguns.

[Spoiler] O diálogo final do filme Le Pont des Arts


Pascoal- Eu não achei que você viria.

Sarah- Você estava esperando por mim.

Pascoal- Eu não estava esperando. Eu estava procurando você.

Sarah- Buscando é estar esperando.

P- Procurei você em todo lugar.

S- Você me encontrou aqui.

P- Por aqui...?

S- Você é o único que sabe.

P- Por que estamos separados?

S- Aqui nós estamos juntos.

P- Sarah.

S- Através de você, eu sou a Sarah. Você ouviu as risadas na minha voz.

P- Eu te amo, Sarah.

S- Eu te amo tb, Pascal.

P- Não há lugar para o amor?

S- Sim, aqui.

P- Não há lugar para o amor no mundo?

S- Nós estamos aqui agora.

P- Nós amamos uns ao outro em um outro tempo.

S- Não, foi agora.

P- Nós nos amávamos em outro lugar.

S- Não, era aqui.

P- Então minha memória não é nada real.

S- Sim, é. É o que ouvimos.

P- Música?

S- Sim.

P- Nada real.
S- Sim, é.

P- O que é a música?

S- Você me ensinou o que é.

P- Ela nasce em silêncio. Morre em silêncio.

S- Entre esses dois silêncios, nos conhecemos. Nós nos amávamos. Essa é a nossa realidade.

P- A realidade mostra que estou vivo e você está morta, eu estou aqui e você está em outro lugar. A realidade diz que há um rio entre nós.

S- Não, não é a realidade. Essa é a inteligência humana.

P- Não é a inteligência a realidade mais elevada?

S- Você sabe que não é. A inteligência humana é surda.

P- Eu quero tocar você... é um abraço no ar.

S- Nada nos separa.
P- Eu quero beijar você.

S- Aqui você me tocou, você me segurou, você me beijou.

P- Eu quero saber da realidade.

S- É aqui.

P- Eu quero saber a sua realidade.

S- Nada nos separa mais.
P- Eu quero ser um corpo com você.

S- Nós somos um corpo na luz.

.

16.3.10

Cinética

A Cinética deu de presente uma atualizaçãozona hoje. Entrevista, novas críticas, de curtas inclusive e o editorial que está aconchegante.

14.3.10

Conversazione in Sicilia, d' Elio Vittorini

Amolador- Diga-me, forasteiro. Não trouxe nada para amolar na região? Não tem uma espada para amolar? Não tem um canhão para amolar?

Forasteiro- Não há muita coisa para amolar nesta região?

Amolador- Não muita coisa digna. Não muito que valha a pena. Não muita coisa que dê prazer.

Forasteiro- Há de amolar facas. Há de amolar tesouras.

Amolador- Facas? Tesouras? Parece-lhe que ainda existem facas e tesouras neste mundo?

Forasteiro- Parecia-me que sim. Não existem facas nem tesouras nesta região?

Amolador- Nem nesta, nem noutra. Passo por muitos sítios, há 15 a 20 mil almas para quem amolo, mas nunca vejo facas e tesouras.

Forasteiro- Mas  o que lhe dão para amolar, se nunca lhe dão facas ou tesouras?


Amolador- É o que lhes pergunto sempre. "O que me dá para amolar? Não me dá uma espada? Não me dá um canhão?" E olho-os de frente, nos olhos e vejo que aquilo que me dão nem merece o nome de prego. Dá prazer amolar uma lâmina de verdade. Se a lançarmos, é um dardo, se a empunharmos é um punhal.
Se todos tivessem sempre uma lâmina de verdade!

Forasteiro- Por quê? Parece-lhe que sucederia alguma coisa?

Amolador- Eu teria prazer em amolar sempre uma lâmina de verdade. Às vezes, parece-me que bastaria que todos tivessem dentes e unhas para amolar. Eu amolá-los-ia como dentes de víbora, unhas de leopardo.

(O Forasteiro deu-lhe uma faca. É amolado com prazer e satisfação com o resultado.)

Forasteiro- Ahh! Quanto custa?

Amolador- 40 centavos.

 (Ele paga.)


Amolador- 4 de pão. 4 de vinho. E os impostos? 4 de impostos. 4 de pão. E o vinho? 4 de vinho. 4de impostos. E o pão?
                
Forasteiro- Mas por que não junta tudo e divide depois?

Amolador- Muito arriscado. Umas vezes, eu comeria tudo, outras, beberia tudo... Toma. Eu queria levar-lhe dois tostões à mais, mas Deus não quer. Eram estes dois tostões que faziam confusão. 2 de pão, 2 de vinho, 2 de imposto.
Peço desculpas. Pensei que podia fazê-lo porque é forasteiro.

Forasteiro- Não faz mal. Dois tostões a mais ou a menos...

Amolador- O problema é que uma pessoa não sabe como se há de comportar com os forasteiros. talves haja amoladores que cobram oito tostões em outras regiões, e podemos causar-lhes prejuízo cobrando mais seis.
É belo o mundo. Luz, sombra, calor, alegria, não- alegria...

Forasteiro- Esperança, caridade...

Amolador- Infância, juventude, velhice...

Forasteiro- Homens, crianças, mulheres...

Amolador- Mulheres belas, mulheres feias, graça de Deus, patifaria e honestidade...

Forasteiro- Memória, fantasia.

Amolador- Qual é o significado disto?

Forasteiro- Oh nada. Pão e Vinho.

Amolador- Salsicha, leite, cabras, porcos e vacas. Ratos.

Forasteiro- Ursos, lobos..

Amolador- Pássaros, árvores e fumo, neve.

Forasteiro- Dança, cura. Já sei, já sei. Morte, imortalidade e ressurreição.

Amolador- Ah!..

Forasteiro- Que coisa!

Amolador- Extraordinário. A,e,i,o,u,e.

Forasteiro- Cálculo.

Amolador- Grande mal: ofender o mundo!
Desculpe, mas se uma pessoa conhece outra e tem muito prazer em conhecê-la e então leva-lhe dois tostões ou duas libras a mais, por um serviço que deveria ter sido gratuito devido ao grande prazer que teve em conhecê-la, o que é essa pessoa, senão um homem que ofende o mundo?

Forasteiro- Oh!

Amolador- Obrigada, amigo. Às vezes confundimos as pequenezas do mundo com as ofensas ao mundo. Ah, se houvessem facas e tesouras, buris, chiços e arcabuzes, morteiros, foices e martelos, canhões, canhões, dinamite.

(Eles permanecem imóveis por um longo tempo, olhando um nos olhos do outro.)





Constellations, dialogues du roman- Conversazione in Sicilia, d' Elio Vittorini- (È un'opera letteraria)

Tradução: Antônio José de Almeida Rodriguês.

Fonte: filme Sicilia, de 1998, Jean- Marie Straub e Daniéle Huillet

1.3.10

Sempre estremeço ante a poesia. A amendoeira, os pássaros,
o bosquezinho onde você está, as flores que você não vê,
a janela aberta sobre a qual eu me debruço e sonho que você
está encostado em meu ombro, as vezes em que sua fotografia
parece triste.

Katherine Mansfield
1.916

24.2.10

A mulher está deitada ao lado do homem que estende o braço sobre sua coxa. O gesto é delicado e frio. Ela parece calma. Ele pára, repousa a mão finalmente sobre o lençol. Ela se vira, "ele deve estar cansado". Ele estava cansado.
Dia morno, parecia guardar chuva.

(...)

 Havia marcado esse almoço para uns anos atrás. Ele estaria lá me esperando. Há muito já combinamos a importância dos atrasos. E nunca discordávamos.

(...)

Ruim foi perceber que as escadas ganharam mais degraus essa manhã. Descer não seria possível, nem subir.

Sabendo o que não fazer era o que importava. Estava calma. Poderia permanecer ali o tempo necessário. Procurei não pensar numa solução, isso poderia antecipar coisas...

Pensei no grão que germinava. Foi numa manhã parecida com essa que encontrei um grão que germinava entre duas pedras. Mas o dia não estava frio como hoje. (...)

(Parecia calma. Isso importava.)

Eu poderia pedir uma mão a alguém que passasse... Com aqueles degraus, ninguém ousaria hoje por aqui. Mas se acaso aparecesse alguém poderia pedir. Jamais! Não me lembro da última vez que pedi algo a alguém. Acho que seguramente nunca pedi nada pra ninguém. E depois.. não saberia como proceder. Acho melhor não. Prefiro não fazer.

Uma rachadura muito profunda saía de dentro do meu apartamento, isso poderia ser muito perigoso. Um trem... lembrava de uma linha de trem há dois quarteirões. Queria estar lá numa manhã fria como essa. E se estiver chovendo talvez eu devesse pegar aquele guarda chuva preto, velho no maleiro. Ainda não descobri de quem é aquele guarda chuva.

Não consigo recordar meus amigos..

Preferiria uma chuva a ter que me proteger.

Tão divertido.. Saudade daquele olhar feliz, pronto pra qq aventura... Viagens sempre me despertaram.

Ver um trem partir me despertaria.

A escada ganhou alguns degraus a mais, impressão que tenho. Essa noite dormi pouco. Onde estaria o gato? (...)

30.1.10

Two Weeks - Grizzly Bear





Save up all the days
A routine relays
Just like yesterday
I told you I would stay

Would you always
Maybe sometimes
Make it easy
Take your time

Think of all the ways
Momentary phase
Just like yesterday
I told you I would stay

Every time you try
Quarter half the mile
Just like yesterday
I told you I would stay

Would you always
Maybe sometimes
Make it easy
Take your time

Pedestres

andantes