30.8.09

Dica de livro

"Eduardo Coutinho", entrevistas organizadas por Felipe Bragança. Eu quero!
Cá estou, fazendo aquilo que sempre fiz. Desta vez, as paredes são diferentes, o teclado é diferente, mas a vida aparentemente é a mesma. O ar não é mais o mesmo, mas seu impacto sobre alvéolos pulmonares, sim. É como se tudo fosse diferente, apesar de causar a mesma sensação: estranhamento.

Eu não compreendo os movimentos dos planetas como gostaria, mas esse mês tudo saiu como previsto e eu sabia. Sinto uma pressão no peito. Certa culpa. Certa saudade de quando não me incomodava com isso. Certa falta.

Antecipo sentimentos, palavras, dúvidas, certezas, saudades. É errado, eu sei. Mas sou errado. Não me importam as frases de efeito. Psicologia barata. Não sei conter certos impulsos que fazem mal, mas sei das consequências deles. Isto é o que importa, saber lidar com o resultado de atos impensados.
Hoje, no mercado, dei valor a pequenas coisas corriqueiras. Coisas que quero pra mim, diariam
ente.

Como? Bem, como... (insira seu texto aqui).

Espero que nada do que foi dito seja esquecido, espero que nada do que foi sentido tenha sido vão e espero que nada do que eu sei seja engano. Pois a vida é isso. E não falo só dos ultimos dias ou meses. Falo dos ultimos anos. Porque eu nunca aprendo.


Ricardo Crestani

27.8.09

Foi durante uma aula de guitarra
Ele estava sentado na ponta da cadeira, esperava
Ela entrou de cabeça baixa
Não eram estranhos
mais ainda não se cumprimentavam



Silêncio



Ele imaginou que talvez ela pensasse em puxar um assunto qq, esperou.




Ele disse: vc tá gostando da aula?

Parecia que ela sairia voando logo antes do próximo silêncio- respiração curta.

Ele entendeu que era mais duro para ela aquilo




-Oii.. você tá me ouvindo? hehe



Ela olhou retirando os fones.



Ah! Vovocê tá gostando da aula? Faz há quanto tempo? Tenho te visto..

Com uma simpatia fabricada para aquilo: - não não, faz tempo que faço.

Silêncio.

Pode-se falar em renovação do Cinema?

Entrevista com Jean Douchet
Tradução caia.fittipaldi@uol.com.br


Jean Douchet: A renovação é fenômeno normal, em arte: há épocas clássicas, épocas maneiristas ou flamboyantes, barrocas; depois disto, alguma coisa renasce. O movimento que era bem visível há 5-10 anos, de capitalização do cinema precedente, no que tinha de ‘alimentar’ para o imaginário dos outros, começa a desaparecer; estamos recomeçando a construir alguma coisa a partir daquilo. Vê-se claramente em todos os cinemas do mundo, dos mais diferentes diretores. Impressiona-me a quantidade de rumos diferentes que o cinema está tomando, em vários lugares do mundo: pode-se falar do “Dogma”, de Kiarostami, dos cinemas asiáticos, do cinema americano que se torna múltiplo – e que não era múltiplo, antes, limitado entre o cinema bem enquadrado de um lado, e o cinema marginal e independente de outro. Tudo isto se mistura cada vez mais. Há claramente uma necessidade de reconstruir um discurso, uma escritura, um pensamento, e acho que isto está ligado a uma necessidade mais geral, mais política e sociológica: a inquietude que se sente em face de um mundo cujas regras já não compreendíamos, pois já não havia regras. E começa-se a perceber que, mesmo assim, há um combate que temos de combater e que isto se traduzirá em filmes; e neste combate que temos de combater haverá também filmes feitos por gente a favor do sistema. De fato, são dois combates, ou contra ou a favor. Um pouco, estamos de volta à Guerra Fria, apesar das diferenças. Haverá – e é simbólico – o campo Spielberg e o campo Kiarostami, os que querem destruir o cinema satisfeito consigo mesmo e os que são contestáveis, porque apostam numa certa baixeza do olhar do espectador.

Não é crime fazer cinema caro, pode-se fazer qualquer coisa, penso em De Palma ou Coppola, mas estes não são os cineastas que têm mais dificuldades com o sistema. Os que não têm dificuldades com o sistema são os que fazem os filmes mais caros, para cercar todos os sentidos do público. Os outros cinemas são cada vez mais diversos, e o ponto em que se pode pensar em engatar uma segunda é que a multiplicidade dos cinemas faz surgir cada vez mais gente interessada por este cinema. O problema é que se divulgam hoje todos os cinemas, filmes que não se viam antes e hoje se vêem, isto faz ferver muito o ‘caldeirão cultural’.

“Cinema de conhecimento”

Sou por um cinema de conhecimento, o cinema é feito para fazer-conhecer, é sua origem científica; ou o cinema é feito para distrair e divertir, o que não é mau em si, não há por que ser contra. Também pelo divertissement pode-se chegar ao conhecimento, como Hitchcock mostrou tão bem. Não há incompatibilidade. Inaceitáveis são, isto sim, os que recusam completamente o fenômeno do conhecimento e querem impor uma ideologia, uma visão de mundo. Kubrick fala disto em seu último filme: de o quanto estamos contaminados, cancerizados pelo dinheiro. Estamos destruídos, perdoe-me a expressão, até os colhões. Estamos destruídos. Não é verdade que haja instintos, somos produtos da sociedade até nossas partes mais íntimas, somos ligados ao dinheiro, o que se traduz no filme pela luz, a luz é a encarnação do dinheiro, como as sociedades sonham o mundo. Estamos destruídos por estas cintilâncias e gostei muito de que os americanos não tenham gostado do filme; é sinal de que não conseguiram não sentir.

É curioso, porque, se se pensa no período 1907-1910, quando a surpresa do cinema começa a diminuir e tudo passa a ser jogos de trucagem dos quais, parece, o público gosta... imediatamente depois surge Griffith, que mostrará que o cinema é completamente outra coisa. Hoje, é esta avalanche de efeitos especiais, o virtual etc. Nada disto é importante. Nada impede que se use seja o que for, qualquer procedimento, pode-se perfeitamente fazer um filme completamente virtual e fazer um grande, enorme filme. Tudo dependerá do pensamento que haja no filme. Se for completamente comercial não interessará. Os filmes estão ficando cada vez mais caros e, um dia, alguém aí quebra a cara.

“Os grandes filmes estão sendo fetichizados”

O conhecimento hoje se reduz à fetichização do próprio filme: conhecemos todas as falas, respondemos em coro com os atores... É uma espécie de ridicularização do filme, mascarada em manifestações de adoração. O jovens não viram os filmes, como nós, em cinemas, em película, em 35mm.; vêem em vídeo. Mas, de qualquer modo, eles têm uma relação possível com o cinema, que é franca, interessada. É verdade que já não crêem no cinema, conhecem os truques, zooms, travellings etc. Então, procuram a parafernália tecnológica dos efeitos especiais, ou, ao contrário, querem encontrar elementos de ‘verdade’ que os interesse ver. Ao mesmo tempo, os cineastas têm de considerar que o público já não é virgem, quer dizer, é blasé. É preciso oferecer ao público, também, um modo de ver. De que modo você vê? Você vê para quê? Se vê apenas para comprar o sensacional, a mercadoria, então este olhar é imundo.

Se o comunismo morreu, em colisão frontal contra o muro de Berlim, estou praticamente convencido de que o capitalismo morrerá logo, em colisão frontal contra o muro do dinheiro, o próprio dinheiro que move o mundo, à custa de correr desatinadamente rumo a nada. Estamos correndo o risco de desequilibrar equilíbrios vitais e isto ganhará forma visível, cinematograficamente falando. O público pressente isto. Os jovens, hoje, são atormentados pelo desemprego. Isto altera o modo como eles vêem o mundo. É preciso que alguém ponha em imagens, na tela, estas angústias, estas perguntas... mesmo que não sejam reproduções naturalistas, ‘como na vida real’. Rosetta por exemplo, que não é nenhuma obra-prima, é um filme importantíssimo porque muita gente se reconhece naquela personagem, que é excessiva, sim, mas que diz isto. E há um olhar que vê aquele filme, um efeito, um estilo. Rosetta é Palme d'Or em Cannes, se comparado a filmes muito mais prestigiados. É possível, há a possibilidade, dentro do próprio cinema, por imperativo artístico, de nadar contra a corrente do pensamento dominante (que é o pensamento da grana).

Quem queira ser totalmente independente, tem de voltar ao cinema puramente experimental, claro, com câmera digital, ou vídeo, e filmar sem gastar nada, ou gastando quase nada. O experimental também pode trabalhar com orçamento mais folgado, é claro, são possibilidades da escritura.

Se um diretor como Lars von Trier pode trabalhar assim, é porque atraiu capitais. Seja como for, sempre estamos dentro de um sistema em que a obra de arte é mercadoria, avaliada como mercadoria – mas pode ser boa arte.

Todos os cinemas são possíveis. Mas, nos próximos dez anos, se não se mudar o sistema de distribuição, desaparecerá o cinema independente. Ou as salas equipam-se para diminuir os custos de distribuição (cópias, aluguéis, fretes, seguros). O verdadeiro problema é como informar ao público potencial do cinema independente que este cinema existe e fazê-lo desejar conhecer este cinema. As grandes produções não têm este problema, porque se alimentam da culpa que a publicidade comercial cria entre as pessoas que não conheçam os filmes arrasa-quarteirão. A crítica também é culpada, porque não fala senão dos filmes mostrados ‘à imprensa’.

“Todo o sistema tornou-se fantasmático”

Todo o sistema tormou-se fantasmático. Há a grande estrutura, mas não há nada dentro dela. Veja as redes Multiplex. É uma loucura, conversa pra engambelar otários: fingem que nos oferecem variedade, mas, cada vez que pagamos para assistir à ‘variedade’ das redes Multiplex estamos, ao mesmo tempo, matando todo o outro cinema, o cinema independente, quer dizer, estamos matando a multiplicidade. E quando, por acaso, algum filme independente consegue acesso àquelas salas é para ser massacrado pelas baixas audiências, salas vazias etc. Os próprios Multiplexes condenam-se à morte. É o fenômeno do ogro: mais cedo ou mais tarde, o ogro destrói-se, ele mesmo.

O que temos de construir são verdadeiras novas vias para difundir o cinema independente – o que implica, sim, o problema da divulgação e promoção, mas também implica que os críticos critiquem, que os ensaístas pensem e trabalhem e escrevam e falem, que a sociedade produza, afinal, pensamento novo. Isto, pelo menos, seria o ideal.

A realidade é que os críticos vêem cada vez menos, os novos filmes aparecem cada vez menos, cada vez menos surgem novos talentos e, se surgem, são logo atraídos para o cinema ‘velho’ o qual, contudo, não os recompensa pelo talento, mas por quanto cada filme gere, de lucros... E lá estamos, outra vez, em colisão frontal contra o muro de dinheiro, que intimida, quando não esteriliza, os novos talentos.

Teremos uma chance, se inventarmos uma possibilidade real de difusão, em pés de ‘concorrência’, de todos os produtos que o cinema está gerando. A força das majors norte-americanas está em que são os atacadistas, distribuem no atacado e, assim, controlam o mercado. Constróem monopólios... que acabarão por matar, também para eles mesmos, a galinha dos ovos de ouro. A galinha dos ovos de ouro está na multiplicidade, não na uniformidade que, aliás, é cada vez mais cara... e um dia explode, como todos os monopólios sempre explodem.

“A crítica também está presa no paradoxo do ogro.”

Estamos vivendo os momentos finais de um sistema, no qual todo mundo protege todo mundo, ao mesmo tempo em que todos fazem ares de ‘criticar’ os outros, uma ‘crítica’ que, de fato, mais preserva do que visa a transformar. É hora de mudar os modos de produção, de distribuição, de difusão e, também, os modos de ver. O que está aí está agonizando. Jamais houve, na história da humanidade, uma invenção que não tenha encontrado imediatamente o seu utilizador, no sentido mais forte da palavra ‘utilizar’. No cinema, é muito evidente: o cinemascope é Nicholas Ray, o zoom é Rossellini, a película ultrassensível é Godard etc. Quando se instalar um sistema de difusão por cabo, tudo mudará.

Com o vídeo e o computador, não dou dez anos para que haja uma revolução total no sistema. Aconteceu no final do ano 1000, do primeiro milênio, e está a ponto de acontecer também no cinema. Em no máximo 15 anos haverá uma revolução. Acho que as salas de cinema sobreviverão: o teatro não morreu, apesar de ter sido ‘morto’ pelo cinema, como dizem tantos. Desaparecerão as cabines de projeção, talvez se possa receber os filmes em casa, as telas aumentam cada dia mais, ficam mais planas, quase de hora em hora. Como o atual sistema de distribuir filmes poderia sobreviver?

Vai acontecer um terremoto, voltaremos a técnicas antigas. Afinal, o grande cinema sempre foi artesanal, mesmo que não tenha sido só artesanal, mesmo que só a ‘carpintaria’ não baste. E ninguém precisa manter-se preso no seu próprio sistema. Veja os filmes dos Straub, que são modelo de produção autônoma e autogerida. Os Straub atingiram a perfeição absoluta no sistema deles. E é claro que também é preciso respirar, ver o mundo à volta de cada um. Quem se fecha em si cria no entorno uma atmosfera irrespirável, mesmo que seja ‘intrigante’ ou ‘interessante’; é insuportável, mesmo assim.

“Godard, o inescapável.”

Para mim, o único cineasta incontornável, do qual ninguém poderá jamais escapar é Godard. Godard é o grande cineasta do fim do século 20, mas é também o maior artista vivo, consideradas todas as artes. Godard oferece cinema de conhecimento, extraordinariamente aberto. Não estou dizendo que seja alguma espécie de Bíblia, mas é indispensável mergulhar no sistema de Godard, também para, se for o caso, sair dele. Godard abre tantas possibilidades – porque pesquisa e propõe perguntas –, que dali se pode partir para praticamente qualquer coisa. É o autor das mais belas e ricas imagens que o cinema jamais ofereceu, não só ao cinema mas às artes plásticas.

Aprender a digerir Godard é processo lento. Godard está 25 anos à nossa frente. É preciso paciência. No início, o público fugia dos filmes de Rossellini, sobretudo durante a fase com Ingrid Bergman. Hoje há Hou Hsiao-hsien, Kiarostami, Coppola, De Palma, até Cronenberg; também, na França, há revelações, mas ainda não há grandes confirmações. Desplechin, por exemplo.

O documentário

Quanto ao documentário, voltamos à necessidade que todos estão sentindo de ver cinema de conhecimento. Comolli e outros. O documentário propõe uma pergunta importante ao cinema: que imagem, para que olhar? A câmera só tem um olho. Este olho tem de olhar de um determinado modo. Que modo é este?

“O espectador é parte constitutiva do filme. Trata-se de exumar a inteligência do espectador.”

Tenho certeza de que os espectadores acompanham tudo isto e recuperarão a fé no cinema. Se se aceita que o espectador seja parte constitutiva do filme, tudo é possível. Mas degrada-se o espectador se se o vê como alguém que se quer pegar pela goela, para arrancar dele o máximo de dinheiro possível. O público não é uma entidade desconhecida. O público é gente como a gente: às vezes, temos cintura dura, cabeça dura, temos preguiça de pensar. Mas o público também inclui gente que quer pensar, que sabe pensar, gente inteligente. Em muitos casos, trata-se de exumar a inteligência do público. Ou, ao contrário, trata-se de favorecer a preguiça geral. Aí, o movimento é no sentido de embrutecer, de abastardar cada vez mais a inteligência, até, dos mais inteligentes e dos que queiram pensar.

“A interatividade é bobagem, para o cinema.”

Não acredito na tal de ‘interatividade’, para o cinema. Vejo como uma espécie de traição. O pior que poderia acontecer é dar aos espectadores a falsa idéia de que eles ‘sabem de cinema’, que conhecem cinema. A idéia de que qualquer um pode brincar com imagens e, assim, mostrar-se ‘criador’. A ‘interatividade’ no cinema é uma espécie de armadilha: as possibilidades são limitadas, estão contidas nos programas. Converte a arte em uma espécie de joguinho de criança.
É bobagem.

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Isso há mais de dez anos. - Comenta o editor do Blog Signo do Dragão, Bruno Andrade.


* JEAN DOUCHET (1929) Crítico, dos Cahiers du cinéma, amigo de cineastas e figurante convidado em inúmeros filmes, dentre os quais A bout de souffle de Jean-Luc Godard, Les 400 Coups de François Truffaut, Céline et Julie vont en bateau de Jacques Rivette, La Maman et la putain de Jean Eustache, aparece também em Un jeu brutal de Jean-Claude Brisseau, La Reine Margot de Patrice Chéreau, Jardins en automne d'Otar Iosseliani. É autor de trabalhos importantes sobre Alfred Hitchcock e por suas análises de Murnau, Akira Kurosawa, Ingmar Bergman ou Jean-Daniel Pollet. É professor na Fondation européenne pour les métiers de l’image et du son (“Fémis”), escola que sucedeu o antigo Institut des hautes études cinématographiques (IDHEC). A entrevista está, sem data.
Imagens Didáticas não valem nada.

23.8.09

CUIDADO COM A MESA

À mesa você deve sentar-se calmamente e sem devanear. Lembremos a quantidade de esforço que foi necessária às marés tempestuosas do oceano para se acomodarem em ordenados anéis de água. Um momento de distração, e tudo pode ser levado de roldão. Também é proibido encostar nas pernas da mesa, elas são muito sensíveis. Tudo, à mesa, deve ser feito de modo tranquilo e objetivo. Para devaneios, recebemos outros objetos de madeira: a floresta, a cama.


Poema do polonês Zbigniew Herbert (1924-1998)

TRADUÇÃO Marcelo Coelho .

7.8.09

KAFKA

Kafka sempre instigante. "Relações kafkanianas” serviram de inspiração para 2 últimos curtas que fiz.

Gregos Sansa por Saramago Aqui:


A sombra do pai (1)


Mikhail Bahktine escreveu na sua Estética e Teoria do Romance: «O objecto principal do género romanesco, aquele que o “especifica”, aquele que cria a sua originalidade estilística, é o homem que fala e a sua palavra». Creio que raramente uma asserção de âmbito geral como esta é terá sido tão exacta como no caso humano e literário de Franz Kafka. Desrespeitando certos teóricos que, não destituídos de razão, se têm insurgido contra a tendência “romântica” de ir procurar à existência de um escritor os sinais da passagem do vivido para o escrito, o que, supostamente, seria a final explicação da obra, Kafka não esconde em nenhum momento (e parece fazer mesmo questão de que se note) o quadro de factores que determinaram a sua dramática vida e, em consequência, o seu trabalho de escritor: o conflito com o pai, o desentendimento com a comunidade judaica, a impossibilidade de deixar a vida celibatária pelo casamento, a enfermidade. Penso que o primeiro daqueles factores, isto é, o antagonismo nunca superado que opôs o pai ao filho e o filho ao pai, é o que constitui a trave mestra de toda a obra kafkiana, dele derivando, como os ramos de uma árvore derivam do tronco principal, o profundo desassossego íntimo que o levou à deriva metafísica, à visão de um mundo agonizando pelo absurdo, à mistificação da consciência.

A primeira referência a O Processo encontra-se nos Diários, foi escrita em 29 de Julho de 1914 (a guerra desencadeara-se no dia anterior) e começa com as seguintes palavras. “Uma noite, Josef K…, filho de um rico comerciante, depois de uma grande discussão que tinha tido com o pai…”. Sabemos que não é assim que o romance irá principiar, mas o nome da personagem principal – Josef K… – já ficou anunciado, tal como em três rápidas linhas de A Metamorfose, escrito quase dois anos antes, já se anunciava o que viria a ser o núcleo temático central de O Processo. Quando, transformado da noite para o dia, sem qualquer explicação do narrador, num bicharoco nojento, misto de escaravelho e de barata, se queixa dos sofrimentos imerecidos que caem sobre o viajante de comércio em geral e sobre ele próprio em particular, Gregorio Samsa expressa-se de uma maneira que não deixa margem para dúvidas: “muitas vezes é vítima de uma simples murmuração, de um acaso, de uma reclamação gratuita, e é-lhe absolutamente impossível defender-se, uma vez que nem sequer sabe de que o acusam”. Todo O Processo está contido nestas palavras. É certo que o pai, “rico comerciante”, desapareceu da história, que a mãe só é mencionada em dois dos capítulos inacabados, e mesmo assim fugazmente e sem caridade filial, mas não me parece um excesso temerário, salvo se estou demasiado equivocado sobre as intenções do autor Kafka, imaginar que a omnipotente e ameaçadora autoridade paterna terá sido, pela estratégia da ficção, transferida para as alturas inacessíveis da Lei Última, essa que, sem precisar de enunciar uma culpa concreta recolhida nos códigos, será sempre implacável na aplicação do castigo. O angustiante e ao mesmo tempo grotesco episódio da agressão executada pelo pai de Gregorio Samsa para expulsar o filho da sala familiar, atirando-lhe com maçãs até que uma delas se lhe vai incrustar na carapaça, descreve uma agonia sem nome, a morte de qualquer esperança de comunicação.



E Aqui:



A sombra do pai (2)


Poucas páginas antes, o escaravelho Gregório Samsa ainda havia articulado penosamente as últimas palavras que a sua boca de insecto fora capaz de pronunciar: “Mãe, mãe”, Depois, como numa primeira morte, entrou na mudez de um silêncio voluntário, senão obrigado pela sua irremediável animalidade, como quem teve de resignar-se definitivamente a não ter pai, mãe e irmã no mundo das baratas. Quando por fim a criada varrer para o lixo a carcaça ressequida em que Gregório Samsa terminará transformado, a sua ausência, daí em diante, só servirá para confirmar o esquecimento a que os seus já o tinham votado. Numa carta de 28 de Agosto de 1913, Kafka irá escrever: “Vivo no meio da minha família, entre as melhores e mais amorosas pessoas que se pode imaginar, como alguém mais estranho que um estranho. Com a minha mãe, nos últimos anos, não falei, em média, mais que vinte palavras por dia, com o meu pai jamais troquei mais que as palavras de saudação”. Será preciso estar muito desatento à leitura para não perceber a dolorosa e amarga ironia contida nas próprias palavras (“Entre as melhores e mais amorosas pessoas que se pode imaginar”) que parecem estar a negá-la. Desatenção igual, creio, seria não atribuir importância especial ao facto de Kafka haver proposto ao seu editor, em 4 de Abril de 1913, que os relatos O Fogueiro (primeiro capítulo do romance América), A Metamorfose e A Sentença fossem reunidos num único volume com o título de Os Filhos (o que, aliás, só muito recentemente, em 1989, viria a suceder). Em O Fogueiro, “o filho” é expulso pelos pais por ter ofendido a honra da família ao engravidar uma criada, em A Sentença “o filho” é condenado pelo pai a morrer por afogamento, em A Metamorfose “o filho” deixou simplesmente de existir, o seu lugar foi tomado por um insecto… Mais do que a Carta ao Pai, escrita em Novembro de 1919, mas que nunca viria a ser entregue ao destinatário, são estes relatos, segundo entendo, e em particular A Sentença e A Metamorfose, que, precisamente por serem transposições literárias em que o jogo de mostrar e esconder funciona como um espelho de ambiguidades e reversos, nos oferecem com mais precisão a dimensão da ferida incurável que o conflito com o pai abriu no espírito de Franz Kafka. A Carta assume, por assim dizer, a forma e o tom de um libelo acusatório, propõe-se como um ajuste de contas final, é um balanço entre o deve e o haver de duas existências enfrentadas, de duas mútuas repugnâncias, pelo que não se pode rejeitar a hipótese de que se encontrem nela exageros e deformações dos factos reais, sobretudo quando Kafka, no final do escrito, passa subitamente a usar a voz do pai para se acusar a si mesmo… Em O Processo, Kafka pôde desfazer-se da figura paterna, objectivamente considerada, mas não da sua lei. E tal como em A Sentença o filho se suicida porque assim o tinha determinado a lei do pai, em O Processo é o próprio acusado Josef K… que acabará por conduzir os seus algozes ao lugar onde será assassinado e que, nos últimos instantes, quando a morte já se vem acercando, ainda dará por si a pensar, como um derradeiro remorso, que não tinha sabido desempenhar o seu papel até ao fim, que não tinha conseguido poupar trabalho às autoridades… Isto é, ao Pai.

4.8.09

MOSCOU- EDUARDO COUTINHO

A obra do Coutinho é instigante demais.

Mauricio Stycer, pro iG fez uma entrevista:

Eduardo Coutinho lamenta o fim das utopias



Sétimo filme que realiza nos últimos dez anos, “Moscou” é desconcertante desde a primeira cena, em que Coutinho surge informando aos atores do grupo que pediu a Diaz que os dirigisse com o objetivo de serem filmados, e que eles teriam apenas três semanas para o trabalho, tempo insuficiente para montar a peça.

iG - Se você fosse diretor de um festival chamado “É Tudo Verdade”, você selecionaria “Moscou”?
Coutinho - São duas questões. Se eu fosse diretor de um festival de documentários, eu chamaria esse filme de documentário? Outra questão: eu chamaria esse filme não porque ele tem ficção no meio, mas porque tem qualidade para participar?
iG - A minha pergunta não coloca em questão a qualidade, mas o gênero.
Coutinho - O sistema do filme é de documentário. Mais que “Jogo de Cena” até. Você tem uma cena, que podia não ter, seria ótimo não ter, que são as regras do jogo. Tem um diretor, tem um grupo, tem três semanas para fazer uma peça. É impossível.
iG - Por que seria melhor não ter essa cena?
Coutinho - O melhor é não ter que explicar nada. Mas aí eu vi que não dava. Aí eu te digo: a partir disso, tirando essa cena, que é ficcional, o sistema é absolutamente de documentário. Não é ficcional. É claramente realista, porque eu estou dizendo: “nós vamos fazer um filme, as regras são essas”. A partir disso, mostro laboratórios, eles tomando lanche, ou fazendo textos da peça. É pura documentação...
iG - Mas essa cena inicial, justamente, não descaracteriza o documentário como tal?
Coutinho - Tem esse fato, realmente. Eu estou ali dizendo que não vai ser a peça, vão ser fragmentos. E o Kike (o diretor teatral Enrique Diaz) lembra que em três semanas é impossível. Uma forma de botar isso, não botando, seria colocar escrito no começo do filme.
iG - Aquelas pessoas jamais teriam se reunido se não fosse por uma proposta sua.
Coutinho - Por isso achei honesto colocar no filme. Esse fato que você coloca, que aquele espetáculo não vai estrear, que aquelas pessoas sabem que não vai estrear... Para quê? Se não tem publico, como é que eu vou fazer? Essas dúvidas fazem parte do filme. Que ficasse um pouco explícito no começo para o sujeito entender o processo. No final, eles estão prontos? Não. É só o ensaio que eu escolhi, do que foi feito.
iG - Uma cena polêmica, mesmo.
Coutinho - Se não tivesse isso (essa cena inicial), veja... O filme já é difícil para caramba. O Kike, 80% do que ele fez, saiu (foi cortado) do filme. Adotei essa regra. O filme não é sobre os bastidores. Quer saber como o Enrique Diaz trabalha? Não vai saber. Tem um exercício que ele faz todo dia, “viewpoint”, umas coisas lindas de filmar, algumas até engraçadas. Acabei tirando. As imensas discussões, umas 15 horas, em que ele discutia os exercícios, uma longa discussão minha com ele, de duas horas, falando coisas mais íntimas sobre a equipe... A primeira versão do filme ficou com 4 horas e 40 minutos. Eu falei: o que eu vou fazer com isso?
iG - Como você resolveu?
Coutinho - Eu e a Jordana (Berg, editora) estávamos totalmente perdidos. O João (Moreira Salles, produtor-executivo de “Moscou”) foi essencial. Ele que me salvou disso. E eu não sabia como eu sair. E resultou num filme totalmente diferente do que eu pensava. Todo mundo olhava o material. Todo mundo dizia: “isso não existe. Isso não é filme”. Porque se fosse para ser um filme sobre o processo de montagem ia ser um saco. Ele disse três coisas, se não me falha a memória. O nome do filme podia ser “Moscou”. Já é uma dica. Segundo: deve ter uma hora e vinte, uma hora e trinta minutos no máximo. O que é uma audácia. Terceiro: vai ser um filme difícil. Pouco importa quem conhece a história da peça. E quarto: esquece que você vai mostrar bastidores.
iG - O que é “Moscou”?
Coutinho - Não adianta eu dizer. É um filme que eu fiz sem saber exatamente o que ele era. Não é o que eu esperava. Deu no que deu. Acho que ele tem uma viagem que alguns vão fazer e outros não vão. Sem menosprezo a quem não seguir e a quem seguir.
iG - Já ouvi muitos elogios ao filme, mas uma certa dificuldade das pessoas em expressar as razões.
Coutinho - Eu também não saberia dizer.
iG - Por que “As Três Irmãs”?
Coutinho - Passei 30 anos vendo teatro e em 1973 abandonei tudo. Por razões como vício de cigarro, e outras, larguei tudo: não vou ao teatro, a concertos, a exposição de arte, show... Não vou. Abandonei. Mas antes eu vi tudo. Eu vi a peça em 1955, 1956, na Escola de Arte Dramática (da USP), onde eu conhecia vários alunos, Nelson Xavier, principalmente, que era muito amigo meu. O primeiro Brecht que eu vi foi na EAD. “Esperando Godot” eu vi na EAD... E numa formatura deles eu vi “As Três Irmãs”, dirigida pelo Alfredo Mesquita. Lembro que eu percebi como aquele texto mexia com os atores, todos jovens. E essa imagem ficou para mim. Vi outras montagens. Vi uma russa, que eu não entendi nada. Vi a do Zé Celso (Martinez Correa, do Teatro Oficina), que era uma merda. Mas aquele espetáculo me marcou. Não que ele fosse genial, mas é aquele negócio da memória... Então, quando precisei de uma peça, pensei nessa.
iG - Quer dizer, você escolheu “As Três Irmãs” por acreditar que ela mexe muito com os atores?
Coutinho - Tchecov, de uma maneira geral, mexe. E tem um outro fator, que entrou secundariamente. É uma coisa meio maluca. Além de tudo, o Tchecov, que é extraordinário, marca uma outra coisa. Digamos que está atrás desse filme, como ideologia: o século XX começa com Tchecov. Em 1900, ele lança “As Três Irmãs”, em 1903, “O Jardim das Cerejeiras”... Enfim, o século, no teatro, começa com ele. Parecia que ia terminar com Brecht (1898-1956) e termina com Beckett (1906-1989). Não tem mais palavras. Nos últimos 20 anos, é um teatro de diretor, não precisa nem de texto. Para o bem e para o mal. Foi então que pensei: quero fazer um filme anti-utópico, que é a visão do Tchecov.
iG - Anti-utópico?
Coutinho - Tchecov não sobreviveria cinco anos na Revolução Russa. Ele morreria antes do Maiakovski (1893-1930). O que eu odeio no Brecht é esse negócio de teatro da era científica. Eu ouço falar a palavra “científica”, tenho vontade de morrer. É o que eu odeio no Brecht, no Eisenstein (cineasta russo, 1898-1948), no Dziga Vertov (documentarista russo, 1896-1954). Todos esses utopistas dos anos 20... Acabou! O progresso foi Auchwitz. O progresso foi a bomba atômica. O progresso é essa crise bancária. O século XX começa com a promessa do socialismo, a Terceira Internacional, e termina com um império, um contra-império e uma Internacional, que é islâmica. Meus Deus! Tem uma nova direita, especialmente aqui em São Paulo, que não dá... Mas o que me deixa puto com a esquerda é como ela tem sido insolentemente burra. Hoje, se há uma coisa que me irrita, é o pensamento utópico.
iG - É uma desilusão?
Coutinho - Pior. E olhe que não fui torturado, nada. Eu me sinto logrado. A experiência do socialismo foi um desastre. Tem que partir do zero. O capitalismo não precisa ser um desastre porque ele não promete o paraíso. O capitalismo não promete nada. A esquerda, veja o Antonio Negri (autor de “Império”), não tem resposta para nada. O capitalismo na maior crise mundial, você vê alguma solução tida como de esquerda? Ninguém! Nenhuma! Porque não tem. E os caras não têm humildade de reconhecer isso. O trabalho da direita é facilitado pela tolice da esquerda.
iG - Pode-se entender que “Moscou” reflete uma nostalgia sua?
Coutinho - Duas palavras são vetadas no meu vocabulário: “esperança” e “nostalgia”. Acho insuportável a idéia de nostalgia. Tenho saudades de quando era jovem – e olha que tenho motivos, o Rio de Janeiro de 40 anos atrás... Mas estou no tempo de hoje. O aqui e agora é que interessa. E odeio a palavra “esperança” porque, no fundo, ela é usada no sentido conservador. Aqueles caras que trabalham no lixo, por exemplo. Já filmei. É claro que eles tem uma coisa que ajuda: a religião. É uma coisa que ajuda a levar para frente. O cara precisa. Mas ele sabe que no dia seguinte vai estar naquela merda novamente. Então, para fora, dizem que sonham que o filho estude etc. Todo mundo diz: o homem não pode viver sem utopias. Estou de acordo. Mas que sejam utopias concretas, que não seja daqui a cem anos. Não acredito mais nisso. Fé nenhuma. Mas, olhe, tenho uma vontade infinita de acreditar. Em tudo. E acho mais fácil acreditar em Deus do que na Albânia, ou em Pequim.
iG - Qual vai ser o próximo filme?
Coutinho - Estou com 75 anos, indo para 76, o que já é uma utopia extraordinária. Não tenho noção se faço outro filme. Fiz sete filmes em dez anos. O que acho uma coisa espantosa. Agora, se eu não continuar a fazer filmes, não tenho mais o que fazer na vida.

http://ultimosegundo.ig.com.br/mauricio_stycer/2009/04/01/eduardo+coutinho+lamenta+o+fim+das+utopias+5255022.html



No Cinemascópio ficou registrado a partir dessa manhã uma inquietação, pelo menos pra mim. Mas uma boa inquietação. Leia aqui:

Moscou

Por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Poder acompanhar a construção lenta e gradual da obra de um autor continua sendo uma das melhores coisas da arte. No caso de Eduardo Coutinho, seu cinema (Cabra Marcado Para Morrer, Santo Forte, Babilônia 2000) firmou-se como o cinema brasileiro do registro, forçosamente rotulado de “documentário”. Recentemente, partiu para ensaios filmados que parecem questionar sua própria herança autoral. Isso nos leva ao curioso fracasso que talvez seja Moscou (Brasil, 2009), seu novo filme.
A possibilidade de Moscou ser uma falha não deve ser entendida como a de um fracasso comum. Não trata-se de um documentário objetivo que nada acrescenta à obra do realizador, ou que resvala para o ‘nada a declarar’ como discurso. Eduardo Coutinho parece estar além disso, como se à procura de uma busca.
Na verdade, se cada filme (ou obra) é uma busca, às vezes é importante registrar a busca, ou a tentativa, como o próprio filme. É um conceito que esse autor já vinha desenvolvendo a cada novo trabalho. Dessa vez, no entanto, ele documenta o processo de uma obra que não acontece.
Durante a projeção de Moscou, Coutinho parece estar nos trazendo uma caixa não com um filme dentro, mas com um paralelepípedo de dez quilos. E nos pede ansioso que olhemos para a pedra que ele achou na sua procura.
Se em Edifício Máster (2003) ele traçava um panorama humano confinado às linhas arquitetônicas de um prédio, em Moscou ele parece despir-se dos personagens para investigar a arquitetura dramática de uma encenação pobre. Vaga sem pistas pela sua pesquisa num filme composto por imagens de um jogral mal filmado em planos estéreis.
Logo, o exercício de Moscou ficará restrito a um jogo puramente intelectual. É a estréia de Coutinho no exercício cerebral monótono e fora de controle, uma lombra bem mais atraente finda a sessão do que ao longo da mesma. Atraente pois um dos nossos grandes autores está livre para experimentar, e solto para tentar se entender, mesmo que a sua busca seja de interesse restrito para os muito poucos que tiverem a paciência.
Isso pode soar como um ponto positivo para alguns, mas certamente deve ser algum tipo de pesadelo momentâneo para esse autor dotado do talento para a clareza inteligente no filmar. Exigir paciência a partir de um exercício brechtiano sem frescor como esse é sensação frustrante na obra de alcance normalmente bem maior que é a obra de Eduardo Coutinho.
A aridez de Moscou para com as figuras que o habitam chama a atenção. No conjunto da obra, o filme é coerente com o anterior, Jogo de Cena (2007), já uma reflexão sobre realismo e drama encenado, usando o teatro não apenas de maneira literal (palco, cortina, coxia), mas no seu sentido mais figurativo (a de uma mentira gerada, como o cinema também é).
Coutinho utiliza mais uma vez o procedimento de atores (Grupo Galpão, de Belo Horizonte) interpretando eles mesmos, e também personagens, nesse caso os de As Três Irmãs, de Anton Checov. O texto de 1901 é um dos mais fascinantes momentos do dramaturgo russo.
A escolha de As Três Irmãs talvez seja sugestiva para conhecedores do trabalho de Coutinho. É sempre um enigma tentar enxergar o homem que faz os filmes, mas o texto de Checov deixa um sabor forte e duradouro de passagem do tempo, da satisfação inalcançável e uma ânsia de ser lembrado num futuro distante. Isso é abraçado com força em determinado momento na voz rouca de Coutinho sumindo em direção ao silêncio.
Já na casa dos 70, Coutinho inspirou em muitos a sensação de estar deixando seu réquiem quando do lançamento de O Fim e o Princípio, em 2005. A sensação volta a rondar Moscou. Naquele outro filme, ele conversava com idosos numa pequena comunidade do interior da Paraíba. Foi um filme de transição e de impasse, apontado por alguns como a repetição de um mesmo procedimento.
Em O Fim e o Princípio, Coutinho parecia flertar com a obra de Lars Von Trier em Dogville (2003). Um mapa emotivo da comunidade sertaneja seguia o mesmo tipo de design do mapa da comunidade no filme do cineasta dinamarquês, e agora é impossível não lembrar em Moscou da encenação de Von Trier via Brecht em Dogville e em Manderlay (2005).
A citação a Von Trier é útil ainda no sentido de trazer Coutinho para um trio de autores (Von Trier com Anticristo, Quentin Tarantino com Bastardos Inglórios) do cinema que acabam de apresentar obras incomuns que podem ser vistas como fracassos especialíssimos que deixam cada um dos autores em encruzilhadas criativas que inspiram mais otimismo do que pessimismo.
No caso de Moscou, há um momento representativo na apresentação dos atores no início do filme. Temos a presença não só do diretor da peça, Enrique Dias, mas do próprio Coutinho, que parece estar substituindo Checov à mesa. Nesse encontro inicial, todos parecem estar indo a algum lugar. No final, suspeita-se que apenas Coutinho foi, saindo ileso de uma experiência que não deu certo, exceto pela pedra que disso resultou.
Filme visto no Cinema da Fundação, Recife, Agosto 2009

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Na Revista Cinética, Eduardo Valente :

Moscou, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2009)

O que pode o cinema?


Ou por outra, o que pode a arte? Ou, ainda, o que pode o Homem? Não são outras as perguntas que parece querer nos colocar o mais recente filme de Eduardo Coutinho, Moscou. Título escolhido a dedo, aliás: pois na peça de Anton Tchekov que é uma das estrelas do filme (a peça, mas também o gênio de Tchekov), o nome da capital russa significa simultaneamente uma memória não mais presente e um desejo ainda não realizado. Em suma, algo de inefável, aquilo a que todos aspiram (o futuro) ou a que se agarram (o passado), mas que não ali está, naquele momento em que se fala/vive. Moscou, a cidade ou a palavra, é, portanto, antes de tudo uma ausência e uma impossibilidade – e é dessas duas, afinal do que trata Moscou, o filme. Ausência e impossibilidade estas que, no fundo, alimentam a pergunta que, independente dos mais diferentes pontos de partida, é a mesma que move todos os filmes recentes de Coutinho: o que, afinal de contas, pode documentar uma câmera que filma uma pessoa que fala?
É justo falar-se de Moscou a partir da perspectiva dos sete filmes que Coutinho realizou nos últimos dez anos, porque é fato que o projeto claramente surge do imbricamento entre duas faces que o diretor revelava nestes filmes. De um lado, o desejo constante de desafiar os limites de seu próprio cinema, propondo agora um filme que, afinal, não se sabe ao certo sobre o que seria na saída, nem como seria feito (algo que fica claro na cena da conversa em que Coutinho e Enrique Diaz apresentam o projeto ao grupo de atores). Do outro lado, o resultado claro de um processo de depuração do desejo de investigar, mais e mais, este mistério que é o poder do ser humano se identificar com o outro pelo (nada) simples processo do narrar – não importando muito afinal, se o que se narra é algo vivido ou inventado, encenado ou natural, justamente porque, ao fim e ao cabo, estas palavras não têm qualquer sentido enquanto oposições.
Coutinho conta, para fazer seu filme, com encontro fortuito absolutamente feliz: o do seu cinema em seu atual momento com o teatro de Enrique Diaz (foto) – diretor que, como vemos no filme, não foi escolhido por Coutinho e sim indicado pelo Grupo Galpão. Sim, porque nos últimos trabalhos realizados com sua companhia teatral (a Cia. dos Atores), Diaz pegava personagens de alguns dos mais consagrados dramaturgos (Shakespeare em Ensaio.Hamlet; Tchekov em A Gaivota), e tentava desmontá-los junto com seus atores, como quem procura dentro daquelas peças/personagens/pessoas algum segredo original que explique o fenômeno de sua própria existência – mas também de sua comunicação com as pessoas através dos séculos. Na mão contrária, ele estava traçando portanto um caminho paralelo ao de Coutinho, que partindo de “personagens reais” vinha tentando cada vez mais tentar desmontá-las como tal, como que para descobrir de seu lado também algum segredo original da comunicação.
Deste encontro, nasce Moscou, que nada mais é do que uma hora e vinte de exploração desta mesma questão: de que forma se dá essa mágica que torna a comunicação, a identificação, o narrar, a arte possíveis? Numa série de cenas quase independentes umas das outras, Coutinho (e Diaz, é muito importante não deixar de pensar no filme como o produto desta parceria) exploram variação após variação deste mesmo mistério. Ora pegam falas escritas por Tchekov lidas por atores interpretando personagens, ora pegam atores falando de sua própria experiência, ora intercambiam atores entre personagens, ora intercambiam personagens entre atores, ora experiências vividas por uns atores para os outros e assim sucessivamente. Todas as possibilidades da análise combinatória destes elementos são tentadas, enquanto vão sendo derrubados todos os limites entre memória e invenção (onde o uso das fotografias é particularmente desconcertante), construção e espontaneidade (e aqui é importante dizer que Moscou também é um poema sobre a arte misteriosa do ator – e seu labor, documentado com bastante atenção a sua existência como tal).
Por todos os sentidos, a escolha de uma peça de Anton Tchekov é preciosa para a investigação que Coutinho e Diaz dispendem, porque seu teatro parece especialmente apto a este exercício de decomposição. Afinal, o mistério da arte de Tchekov é justamente este das fronteiras indistintas entre o comum e o incomum. Tão centrada em seu local e tempo (a Rússia da virada do século 19 para o 20), tão desprovida de grandes intrigas, ao mesmo tempo transcende totalmente tempo e espaço e engaja o espectador num mundo que ele reconhece como seu. No entanto, ao mesmo tempo em que o espectador consegue sentir por personagens tão distantes dele uma completa empatia (a partilha de algo em comum), estes mesmos personagens ali, existindo num mesmo espaço e tempo entre si, vivem o drama da constatação de uma solidão intransponível (o incomum que os separa, lembrando-os sempre que cada ser é um mundo).
Voltamos então àquele que é o autêntico mistério da arte (e, por que não, da existência): o mistério do encontro entre duas subjetividades (artista-receptor), este momento que é e será sempre sublime – mesmo que sabidamente fugaz no meio de um desencontro muito maior e inescapável. A constatação desta fugacidade como ponto de chegada, como desejo irrealizável de um lugar onde alteridade pudesse tornar-se identidade, desta Moscou a que todos vivemos presos portanto não desanima Eduardo Coutinho – como antes não desanimou Anton Tchekov ou Roberto Carlos, outro poeta do desencontro no encontro (e que, não por acaso, tem música cantada no processo dos atores). Quando sabemos que Coutinho enfrentou uma séria doença logo antes e durante a realização de Moscou, o filme ganha mais significado como uma aposta ou uma afirmação de que a arte, quanto mais sabedora da sua limitação (ou, sendo radicais, inutilidade), mais útil e ilimitada pode ser. Pois sabe que conseguir o encontro entre um e o outro (artista e espectador) é o resultado de um milagre tal que, independente do fato do momento exato deste encontro estar fadado a sumir segundos depois de ter acontecido, isso não o tornará menos real – como é a experiência de assistir Moscou.
Abril de 2009
editoria@revistacinetica.com.br

 
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Já Jean- Claude Bernadet nos deixa no breu. Transcrevi do seu blog:

Moscou


Concordo plenamente com o comentário de Eduardo Escorel (Piauí, 35, 3.8.2009) sobre o último filme de Eduardo Coutinho: MOSCOU é uma catástrofe e um impasse.
A catástrofe, acredito que Escorel a tenha analisado com fina sensibilidade.
Quanto ao impasse, penso que ele deve ser colocado em outra perspectiva que não apenas a carreira de Coutinho ou sua filmografia: ele realizou filmes notáveis, este último infelizmente não é tão bom. Penso que o impasse não é só do Coutinho, mas é coletivo.

JOGO DE CENA põe em dúvida toda a filmografia de Coutinho desde SANTO SANTO FORTE (uma coragem excepcional). JOGO DE CENA põe em dúvida todos os filmes documentários baseados na fala como discurso da subjetividade e no relato de histórias de vida. Põe em dúvida a relação entre o corpo falante e a fala da subjetividade (quem emite esta fala? essa fala fala do quê?). Põe em dúvida a relação entre a fala e a subjetividade.
Após a projeção de JOGO DE CENA falei e estranhei (isto é verdade): quem fala? eu? eu quem? O filme desestabiliza a noção de sujeito. Ou eu estou a ver fantasminhas, ou JOGO DE CENA é de uma trágica radicalidade. O problema não é de Coutinho, mas de todos aqueles que se sentem atingidos por essa trágica radicalidade.
Filmes de que participei, gravados antes de JOGO DE CENA, me parecem hoje pueris. Estou atualmente trabalhando num documentário que envolve discurso da subjetividade e relatos de histórias de vida: simplesmente eu não consigo entrar neste filme. JOGO DE CENA foi longe demais.
A frase de Escorel – “Coutinho é o grande ausente de MOSCOU” – é de uma grande beleza e de uma extraordinária precisão. Coutinho não poderia “ser” presente porque o sujeito está desestabilizado. Quando voltaremos a ser presentes?
Fantasiei que, para quebrar o impasse em que JOGO DE CENA nos meteu, Coutinho poderia/deveria sentar diante de uma câmera, em primeiro plano, permanecer em SILÊNCIO, por um tempo indeterminado.

http://jcbernardet.blog.uol.com.br/


E pra Cinética Daniel Caetano fez um textaço, vale clicar aí.



Preciso ver esse filme!

Pedestres

andantes