4.8.09

MOSCOU- EDUARDO COUTINHO

A obra do Coutinho é instigante demais.

Mauricio Stycer, pro iG fez uma entrevista:

Eduardo Coutinho lamenta o fim das utopias



Sétimo filme que realiza nos últimos dez anos, “Moscou” é desconcertante desde a primeira cena, em que Coutinho surge informando aos atores do grupo que pediu a Diaz que os dirigisse com o objetivo de serem filmados, e que eles teriam apenas três semanas para o trabalho, tempo insuficiente para montar a peça.

iG - Se você fosse diretor de um festival chamado “É Tudo Verdade”, você selecionaria “Moscou”?
Coutinho - São duas questões. Se eu fosse diretor de um festival de documentários, eu chamaria esse filme de documentário? Outra questão: eu chamaria esse filme não porque ele tem ficção no meio, mas porque tem qualidade para participar?
iG - A minha pergunta não coloca em questão a qualidade, mas o gênero.
Coutinho - O sistema do filme é de documentário. Mais que “Jogo de Cena” até. Você tem uma cena, que podia não ter, seria ótimo não ter, que são as regras do jogo. Tem um diretor, tem um grupo, tem três semanas para fazer uma peça. É impossível.
iG - Por que seria melhor não ter essa cena?
Coutinho - O melhor é não ter que explicar nada. Mas aí eu vi que não dava. Aí eu te digo: a partir disso, tirando essa cena, que é ficcional, o sistema é absolutamente de documentário. Não é ficcional. É claramente realista, porque eu estou dizendo: “nós vamos fazer um filme, as regras são essas”. A partir disso, mostro laboratórios, eles tomando lanche, ou fazendo textos da peça. É pura documentação...
iG - Mas essa cena inicial, justamente, não descaracteriza o documentário como tal?
Coutinho - Tem esse fato, realmente. Eu estou ali dizendo que não vai ser a peça, vão ser fragmentos. E o Kike (o diretor teatral Enrique Diaz) lembra que em três semanas é impossível. Uma forma de botar isso, não botando, seria colocar escrito no começo do filme.
iG - Aquelas pessoas jamais teriam se reunido se não fosse por uma proposta sua.
Coutinho - Por isso achei honesto colocar no filme. Esse fato que você coloca, que aquele espetáculo não vai estrear, que aquelas pessoas sabem que não vai estrear... Para quê? Se não tem publico, como é que eu vou fazer? Essas dúvidas fazem parte do filme. Que ficasse um pouco explícito no começo para o sujeito entender o processo. No final, eles estão prontos? Não. É só o ensaio que eu escolhi, do que foi feito.
iG - Uma cena polêmica, mesmo.
Coutinho - Se não tivesse isso (essa cena inicial), veja... O filme já é difícil para caramba. O Kike, 80% do que ele fez, saiu (foi cortado) do filme. Adotei essa regra. O filme não é sobre os bastidores. Quer saber como o Enrique Diaz trabalha? Não vai saber. Tem um exercício que ele faz todo dia, “viewpoint”, umas coisas lindas de filmar, algumas até engraçadas. Acabei tirando. As imensas discussões, umas 15 horas, em que ele discutia os exercícios, uma longa discussão minha com ele, de duas horas, falando coisas mais íntimas sobre a equipe... A primeira versão do filme ficou com 4 horas e 40 minutos. Eu falei: o que eu vou fazer com isso?
iG - Como você resolveu?
Coutinho - Eu e a Jordana (Berg, editora) estávamos totalmente perdidos. O João (Moreira Salles, produtor-executivo de “Moscou”) foi essencial. Ele que me salvou disso. E eu não sabia como eu sair. E resultou num filme totalmente diferente do que eu pensava. Todo mundo olhava o material. Todo mundo dizia: “isso não existe. Isso não é filme”. Porque se fosse para ser um filme sobre o processo de montagem ia ser um saco. Ele disse três coisas, se não me falha a memória. O nome do filme podia ser “Moscou”. Já é uma dica. Segundo: deve ter uma hora e vinte, uma hora e trinta minutos no máximo. O que é uma audácia. Terceiro: vai ser um filme difícil. Pouco importa quem conhece a história da peça. E quarto: esquece que você vai mostrar bastidores.
iG - O que é “Moscou”?
Coutinho - Não adianta eu dizer. É um filme que eu fiz sem saber exatamente o que ele era. Não é o que eu esperava. Deu no que deu. Acho que ele tem uma viagem que alguns vão fazer e outros não vão. Sem menosprezo a quem não seguir e a quem seguir.
iG - Já ouvi muitos elogios ao filme, mas uma certa dificuldade das pessoas em expressar as razões.
Coutinho - Eu também não saberia dizer.
iG - Por que “As Três Irmãs”?
Coutinho - Passei 30 anos vendo teatro e em 1973 abandonei tudo. Por razões como vício de cigarro, e outras, larguei tudo: não vou ao teatro, a concertos, a exposição de arte, show... Não vou. Abandonei. Mas antes eu vi tudo. Eu vi a peça em 1955, 1956, na Escola de Arte Dramática (da USP), onde eu conhecia vários alunos, Nelson Xavier, principalmente, que era muito amigo meu. O primeiro Brecht que eu vi foi na EAD. “Esperando Godot” eu vi na EAD... E numa formatura deles eu vi “As Três Irmãs”, dirigida pelo Alfredo Mesquita. Lembro que eu percebi como aquele texto mexia com os atores, todos jovens. E essa imagem ficou para mim. Vi outras montagens. Vi uma russa, que eu não entendi nada. Vi a do Zé Celso (Martinez Correa, do Teatro Oficina), que era uma merda. Mas aquele espetáculo me marcou. Não que ele fosse genial, mas é aquele negócio da memória... Então, quando precisei de uma peça, pensei nessa.
iG - Quer dizer, você escolheu “As Três Irmãs” por acreditar que ela mexe muito com os atores?
Coutinho - Tchecov, de uma maneira geral, mexe. E tem um outro fator, que entrou secundariamente. É uma coisa meio maluca. Além de tudo, o Tchecov, que é extraordinário, marca uma outra coisa. Digamos que está atrás desse filme, como ideologia: o século XX começa com Tchecov. Em 1900, ele lança “As Três Irmãs”, em 1903, “O Jardim das Cerejeiras”... Enfim, o século, no teatro, começa com ele. Parecia que ia terminar com Brecht (1898-1956) e termina com Beckett (1906-1989). Não tem mais palavras. Nos últimos 20 anos, é um teatro de diretor, não precisa nem de texto. Para o bem e para o mal. Foi então que pensei: quero fazer um filme anti-utópico, que é a visão do Tchecov.
iG - Anti-utópico?
Coutinho - Tchecov não sobreviveria cinco anos na Revolução Russa. Ele morreria antes do Maiakovski (1893-1930). O que eu odeio no Brecht é esse negócio de teatro da era científica. Eu ouço falar a palavra “científica”, tenho vontade de morrer. É o que eu odeio no Brecht, no Eisenstein (cineasta russo, 1898-1948), no Dziga Vertov (documentarista russo, 1896-1954). Todos esses utopistas dos anos 20... Acabou! O progresso foi Auchwitz. O progresso foi a bomba atômica. O progresso é essa crise bancária. O século XX começa com a promessa do socialismo, a Terceira Internacional, e termina com um império, um contra-império e uma Internacional, que é islâmica. Meus Deus! Tem uma nova direita, especialmente aqui em São Paulo, que não dá... Mas o que me deixa puto com a esquerda é como ela tem sido insolentemente burra. Hoje, se há uma coisa que me irrita, é o pensamento utópico.
iG - É uma desilusão?
Coutinho - Pior. E olhe que não fui torturado, nada. Eu me sinto logrado. A experiência do socialismo foi um desastre. Tem que partir do zero. O capitalismo não precisa ser um desastre porque ele não promete o paraíso. O capitalismo não promete nada. A esquerda, veja o Antonio Negri (autor de “Império”), não tem resposta para nada. O capitalismo na maior crise mundial, você vê alguma solução tida como de esquerda? Ninguém! Nenhuma! Porque não tem. E os caras não têm humildade de reconhecer isso. O trabalho da direita é facilitado pela tolice da esquerda.
iG - Pode-se entender que “Moscou” reflete uma nostalgia sua?
Coutinho - Duas palavras são vetadas no meu vocabulário: “esperança” e “nostalgia”. Acho insuportável a idéia de nostalgia. Tenho saudades de quando era jovem – e olha que tenho motivos, o Rio de Janeiro de 40 anos atrás... Mas estou no tempo de hoje. O aqui e agora é que interessa. E odeio a palavra “esperança” porque, no fundo, ela é usada no sentido conservador. Aqueles caras que trabalham no lixo, por exemplo. Já filmei. É claro que eles tem uma coisa que ajuda: a religião. É uma coisa que ajuda a levar para frente. O cara precisa. Mas ele sabe que no dia seguinte vai estar naquela merda novamente. Então, para fora, dizem que sonham que o filho estude etc. Todo mundo diz: o homem não pode viver sem utopias. Estou de acordo. Mas que sejam utopias concretas, que não seja daqui a cem anos. Não acredito mais nisso. Fé nenhuma. Mas, olhe, tenho uma vontade infinita de acreditar. Em tudo. E acho mais fácil acreditar em Deus do que na Albânia, ou em Pequim.
iG - Qual vai ser o próximo filme?
Coutinho - Estou com 75 anos, indo para 76, o que já é uma utopia extraordinária. Não tenho noção se faço outro filme. Fiz sete filmes em dez anos. O que acho uma coisa espantosa. Agora, se eu não continuar a fazer filmes, não tenho mais o que fazer na vida.

http://ultimosegundo.ig.com.br/mauricio_stycer/2009/04/01/eduardo+coutinho+lamenta+o+fim+das+utopias+5255022.html



No Cinemascópio ficou registrado a partir dessa manhã uma inquietação, pelo menos pra mim. Mas uma boa inquietação. Leia aqui:

Moscou

Por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Poder acompanhar a construção lenta e gradual da obra de um autor continua sendo uma das melhores coisas da arte. No caso de Eduardo Coutinho, seu cinema (Cabra Marcado Para Morrer, Santo Forte, Babilônia 2000) firmou-se como o cinema brasileiro do registro, forçosamente rotulado de “documentário”. Recentemente, partiu para ensaios filmados que parecem questionar sua própria herança autoral. Isso nos leva ao curioso fracasso que talvez seja Moscou (Brasil, 2009), seu novo filme.
A possibilidade de Moscou ser uma falha não deve ser entendida como a de um fracasso comum. Não trata-se de um documentário objetivo que nada acrescenta à obra do realizador, ou que resvala para o ‘nada a declarar’ como discurso. Eduardo Coutinho parece estar além disso, como se à procura de uma busca.
Na verdade, se cada filme (ou obra) é uma busca, às vezes é importante registrar a busca, ou a tentativa, como o próprio filme. É um conceito que esse autor já vinha desenvolvendo a cada novo trabalho. Dessa vez, no entanto, ele documenta o processo de uma obra que não acontece.
Durante a projeção de Moscou, Coutinho parece estar nos trazendo uma caixa não com um filme dentro, mas com um paralelepípedo de dez quilos. E nos pede ansioso que olhemos para a pedra que ele achou na sua procura.
Se em Edifício Máster (2003) ele traçava um panorama humano confinado às linhas arquitetônicas de um prédio, em Moscou ele parece despir-se dos personagens para investigar a arquitetura dramática de uma encenação pobre. Vaga sem pistas pela sua pesquisa num filme composto por imagens de um jogral mal filmado em planos estéreis.
Logo, o exercício de Moscou ficará restrito a um jogo puramente intelectual. É a estréia de Coutinho no exercício cerebral monótono e fora de controle, uma lombra bem mais atraente finda a sessão do que ao longo da mesma. Atraente pois um dos nossos grandes autores está livre para experimentar, e solto para tentar se entender, mesmo que a sua busca seja de interesse restrito para os muito poucos que tiverem a paciência.
Isso pode soar como um ponto positivo para alguns, mas certamente deve ser algum tipo de pesadelo momentâneo para esse autor dotado do talento para a clareza inteligente no filmar. Exigir paciência a partir de um exercício brechtiano sem frescor como esse é sensação frustrante na obra de alcance normalmente bem maior que é a obra de Eduardo Coutinho.
A aridez de Moscou para com as figuras que o habitam chama a atenção. No conjunto da obra, o filme é coerente com o anterior, Jogo de Cena (2007), já uma reflexão sobre realismo e drama encenado, usando o teatro não apenas de maneira literal (palco, cortina, coxia), mas no seu sentido mais figurativo (a de uma mentira gerada, como o cinema também é).
Coutinho utiliza mais uma vez o procedimento de atores (Grupo Galpão, de Belo Horizonte) interpretando eles mesmos, e também personagens, nesse caso os de As Três Irmãs, de Anton Checov. O texto de 1901 é um dos mais fascinantes momentos do dramaturgo russo.
A escolha de As Três Irmãs talvez seja sugestiva para conhecedores do trabalho de Coutinho. É sempre um enigma tentar enxergar o homem que faz os filmes, mas o texto de Checov deixa um sabor forte e duradouro de passagem do tempo, da satisfação inalcançável e uma ânsia de ser lembrado num futuro distante. Isso é abraçado com força em determinado momento na voz rouca de Coutinho sumindo em direção ao silêncio.
Já na casa dos 70, Coutinho inspirou em muitos a sensação de estar deixando seu réquiem quando do lançamento de O Fim e o Princípio, em 2005. A sensação volta a rondar Moscou. Naquele outro filme, ele conversava com idosos numa pequena comunidade do interior da Paraíba. Foi um filme de transição e de impasse, apontado por alguns como a repetição de um mesmo procedimento.
Em O Fim e o Princípio, Coutinho parecia flertar com a obra de Lars Von Trier em Dogville (2003). Um mapa emotivo da comunidade sertaneja seguia o mesmo tipo de design do mapa da comunidade no filme do cineasta dinamarquês, e agora é impossível não lembrar em Moscou da encenação de Von Trier via Brecht em Dogville e em Manderlay (2005).
A citação a Von Trier é útil ainda no sentido de trazer Coutinho para um trio de autores (Von Trier com Anticristo, Quentin Tarantino com Bastardos Inglórios) do cinema que acabam de apresentar obras incomuns que podem ser vistas como fracassos especialíssimos que deixam cada um dos autores em encruzilhadas criativas que inspiram mais otimismo do que pessimismo.
No caso de Moscou, há um momento representativo na apresentação dos atores no início do filme. Temos a presença não só do diretor da peça, Enrique Dias, mas do próprio Coutinho, que parece estar substituindo Checov à mesa. Nesse encontro inicial, todos parecem estar indo a algum lugar. No final, suspeita-se que apenas Coutinho foi, saindo ileso de uma experiência que não deu certo, exceto pela pedra que disso resultou.
Filme visto no Cinema da Fundação, Recife, Agosto 2009

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Na Revista Cinética, Eduardo Valente :

Moscou, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2009)

O que pode o cinema?


Ou por outra, o que pode a arte? Ou, ainda, o que pode o Homem? Não são outras as perguntas que parece querer nos colocar o mais recente filme de Eduardo Coutinho, Moscou. Título escolhido a dedo, aliás: pois na peça de Anton Tchekov que é uma das estrelas do filme (a peça, mas também o gênio de Tchekov), o nome da capital russa significa simultaneamente uma memória não mais presente e um desejo ainda não realizado. Em suma, algo de inefável, aquilo a que todos aspiram (o futuro) ou a que se agarram (o passado), mas que não ali está, naquele momento em que se fala/vive. Moscou, a cidade ou a palavra, é, portanto, antes de tudo uma ausência e uma impossibilidade – e é dessas duas, afinal do que trata Moscou, o filme. Ausência e impossibilidade estas que, no fundo, alimentam a pergunta que, independente dos mais diferentes pontos de partida, é a mesma que move todos os filmes recentes de Coutinho: o que, afinal de contas, pode documentar uma câmera que filma uma pessoa que fala?
É justo falar-se de Moscou a partir da perspectiva dos sete filmes que Coutinho realizou nos últimos dez anos, porque é fato que o projeto claramente surge do imbricamento entre duas faces que o diretor revelava nestes filmes. De um lado, o desejo constante de desafiar os limites de seu próprio cinema, propondo agora um filme que, afinal, não se sabe ao certo sobre o que seria na saída, nem como seria feito (algo que fica claro na cena da conversa em que Coutinho e Enrique Diaz apresentam o projeto ao grupo de atores). Do outro lado, o resultado claro de um processo de depuração do desejo de investigar, mais e mais, este mistério que é o poder do ser humano se identificar com o outro pelo (nada) simples processo do narrar – não importando muito afinal, se o que se narra é algo vivido ou inventado, encenado ou natural, justamente porque, ao fim e ao cabo, estas palavras não têm qualquer sentido enquanto oposições.
Coutinho conta, para fazer seu filme, com encontro fortuito absolutamente feliz: o do seu cinema em seu atual momento com o teatro de Enrique Diaz (foto) – diretor que, como vemos no filme, não foi escolhido por Coutinho e sim indicado pelo Grupo Galpão. Sim, porque nos últimos trabalhos realizados com sua companhia teatral (a Cia. dos Atores), Diaz pegava personagens de alguns dos mais consagrados dramaturgos (Shakespeare em Ensaio.Hamlet; Tchekov em A Gaivota), e tentava desmontá-los junto com seus atores, como quem procura dentro daquelas peças/personagens/pessoas algum segredo original que explique o fenômeno de sua própria existência – mas também de sua comunicação com as pessoas através dos séculos. Na mão contrária, ele estava traçando portanto um caminho paralelo ao de Coutinho, que partindo de “personagens reais” vinha tentando cada vez mais tentar desmontá-las como tal, como que para descobrir de seu lado também algum segredo original da comunicação.
Deste encontro, nasce Moscou, que nada mais é do que uma hora e vinte de exploração desta mesma questão: de que forma se dá essa mágica que torna a comunicação, a identificação, o narrar, a arte possíveis? Numa série de cenas quase independentes umas das outras, Coutinho (e Diaz, é muito importante não deixar de pensar no filme como o produto desta parceria) exploram variação após variação deste mesmo mistério. Ora pegam falas escritas por Tchekov lidas por atores interpretando personagens, ora pegam atores falando de sua própria experiência, ora intercambiam atores entre personagens, ora intercambiam personagens entre atores, ora experiências vividas por uns atores para os outros e assim sucessivamente. Todas as possibilidades da análise combinatória destes elementos são tentadas, enquanto vão sendo derrubados todos os limites entre memória e invenção (onde o uso das fotografias é particularmente desconcertante), construção e espontaneidade (e aqui é importante dizer que Moscou também é um poema sobre a arte misteriosa do ator – e seu labor, documentado com bastante atenção a sua existência como tal).
Por todos os sentidos, a escolha de uma peça de Anton Tchekov é preciosa para a investigação que Coutinho e Diaz dispendem, porque seu teatro parece especialmente apto a este exercício de decomposição. Afinal, o mistério da arte de Tchekov é justamente este das fronteiras indistintas entre o comum e o incomum. Tão centrada em seu local e tempo (a Rússia da virada do século 19 para o 20), tão desprovida de grandes intrigas, ao mesmo tempo transcende totalmente tempo e espaço e engaja o espectador num mundo que ele reconhece como seu. No entanto, ao mesmo tempo em que o espectador consegue sentir por personagens tão distantes dele uma completa empatia (a partilha de algo em comum), estes mesmos personagens ali, existindo num mesmo espaço e tempo entre si, vivem o drama da constatação de uma solidão intransponível (o incomum que os separa, lembrando-os sempre que cada ser é um mundo).
Voltamos então àquele que é o autêntico mistério da arte (e, por que não, da existência): o mistério do encontro entre duas subjetividades (artista-receptor), este momento que é e será sempre sublime – mesmo que sabidamente fugaz no meio de um desencontro muito maior e inescapável. A constatação desta fugacidade como ponto de chegada, como desejo irrealizável de um lugar onde alteridade pudesse tornar-se identidade, desta Moscou a que todos vivemos presos portanto não desanima Eduardo Coutinho – como antes não desanimou Anton Tchekov ou Roberto Carlos, outro poeta do desencontro no encontro (e que, não por acaso, tem música cantada no processo dos atores). Quando sabemos que Coutinho enfrentou uma séria doença logo antes e durante a realização de Moscou, o filme ganha mais significado como uma aposta ou uma afirmação de que a arte, quanto mais sabedora da sua limitação (ou, sendo radicais, inutilidade), mais útil e ilimitada pode ser. Pois sabe que conseguir o encontro entre um e o outro (artista e espectador) é o resultado de um milagre tal que, independente do fato do momento exato deste encontro estar fadado a sumir segundos depois de ter acontecido, isso não o tornará menos real – como é a experiência de assistir Moscou.
Abril de 2009
editoria@revistacinetica.com.br

 
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Já Jean- Claude Bernadet nos deixa no breu. Transcrevi do seu blog:

Moscou


Concordo plenamente com o comentário de Eduardo Escorel (Piauí, 35, 3.8.2009) sobre o último filme de Eduardo Coutinho: MOSCOU é uma catástrofe e um impasse.
A catástrofe, acredito que Escorel a tenha analisado com fina sensibilidade.
Quanto ao impasse, penso que ele deve ser colocado em outra perspectiva que não apenas a carreira de Coutinho ou sua filmografia: ele realizou filmes notáveis, este último infelizmente não é tão bom. Penso que o impasse não é só do Coutinho, mas é coletivo.

JOGO DE CENA põe em dúvida toda a filmografia de Coutinho desde SANTO SANTO FORTE (uma coragem excepcional). JOGO DE CENA põe em dúvida todos os filmes documentários baseados na fala como discurso da subjetividade e no relato de histórias de vida. Põe em dúvida a relação entre o corpo falante e a fala da subjetividade (quem emite esta fala? essa fala fala do quê?). Põe em dúvida a relação entre a fala e a subjetividade.
Após a projeção de JOGO DE CENA falei e estranhei (isto é verdade): quem fala? eu? eu quem? O filme desestabiliza a noção de sujeito. Ou eu estou a ver fantasminhas, ou JOGO DE CENA é de uma trágica radicalidade. O problema não é de Coutinho, mas de todos aqueles que se sentem atingidos por essa trágica radicalidade.
Filmes de que participei, gravados antes de JOGO DE CENA, me parecem hoje pueris. Estou atualmente trabalhando num documentário que envolve discurso da subjetividade e relatos de histórias de vida: simplesmente eu não consigo entrar neste filme. JOGO DE CENA foi longe demais.
A frase de Escorel – “Coutinho é o grande ausente de MOSCOU” – é de uma grande beleza e de uma extraordinária precisão. Coutinho não poderia “ser” presente porque o sujeito está desestabilizado. Quando voltaremos a ser presentes?
Fantasiei que, para quebrar o impasse em que JOGO DE CENA nos meteu, Coutinho poderia/deveria sentar diante de uma câmera, em primeiro plano, permanecer em SILÊNCIO, por um tempo indeterminado.

http://jcbernardet.blog.uol.com.br/


E pra Cinética Daniel Caetano fez um textaço, vale clicar aí.



Preciso ver esse filme!

Um comentário:

Anônimo disse...

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