21.5.09

Trouxe até aqui um texto do Daniel Caetano sobre a crítica...

quem sabe a Debra... ou alguém vivo aí se anima...


relendo "Contra a interpretação", da Sontag

Por conta de uma aula que estou seguindo na Puc, ministrada em parceria pela Heidrun e pela Daniela, acabei pegando esse texto bonito da Sontag, o "Contra a interpretação", do livro homônimo, que já tinha lido anos atrás. A aula trata das teorias de estética da recepção e o texto fica especialmente curioso nesse contexto - porque ele tem um tom de manifesto mas, ao mesmo tempo em que promete dar um belo passo no caminho a que se propõe, ele deixa a sensação de que na hora agá acaba recuando. Pelo menos foi essa a impressão que eu tive. É claro, é um texto dos anos 60, já clássico e com uma força incrível. Mas desde o início ela procura atacar a raiz fantasmática que é própria da natureza interpretativa (que tende a abandonar a presença dos objetos artísticos em favor de enxergá-los como símbolos, como referências a algo que não está evidente, que não está presente) e, no final, acaba criando um novo fantasma, o de algo que poderia ser chamado de "obra-em-si". Chamem o alemão! É curioso que, desse modo, o texto acaba descortinando um problema constante de uma certa tendência da crítica de arte: aquela que almeja uma "verdade objetiva" que está além da relação pessoal do crítico com a obra; que acredita que pode falar da obra de forma objetiva, a-histórica.

É claro que "Contra a Interpretação" tem algumas partes muito bonitas e na verdade, como eu disse, pretende ter uma perspectiva diferente disto. Tanto é assim que logo no início a autora imagina que o princípio da produção que se chamaria de artística esteve ligado a rituais e que, portanto, a sensibilidade estética se dava com os objetos em si, não através da interpretação - na visão dela (que me parece um pouco duvidosa), eram oferendas cujo valor era intrínseco, não simbólico. Depois, ela aponta que é a partir da compreensão da arte como mímesis que nasce o projeto interpretativo: uma obra é algo de valor simbólico; uma pintura não vale por si só, mas pelo que simboliza, pelo que mostra das coisas do mundo: as ações das tragédias eram belas não por características intrínsecas, mas por simbolizarem confrontos morais complexos. O desenvolvimento do projeto interpretativo é levado a um ponto em que textos antigos precisam passar por interpretações renovadas para se manterem atuais - as novas interpretações, de certa maneira, criam novos textos. Ela exemplifica com os usos das teorias de Marx e Freud: com as ferramentas interpretativas que criaram, a produção artística pôde ser revista, re-entendida.

Dessa forma, num exemplo em que penso agora, o personagem Abraham Lincoln pôde ser visto como um símbolo fálico pelo grupo da Cahiers num famoso texto sobre o filme de John Ford, mesmo que o cineasta não tenha exibido nenhum falo nesta sua obra (e nem nas demais, até onde se sabe). É uma interpretação - uma recriação aos olhos de quem vê para tornar a obra compreensível, digerível:

"Compreender é interpretar. E interpretar é reafirmar o fenômeno, de fato, descobrir um equivalente adequado. (...) Em alguns contextos culturais, a interpretação é um ato que libera. É uma forma de rever, de transpor valores, de fugir do passado morto. Em outros contextos culturais, é reacionária, impertinente, covarde, asfixiante".

Logo em seguida vem a melhor parte do texto, onde é exposto o ponto central da sua crítica:

"O nosso é um tempo em que o projeto da interpretação é em grande parte reacionário, asfixiante. (...) Numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertrofia do intelecto em detrimento da energia e da capacidade sensorial, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte.

(...) Na maioria dos casos atuais, a interpretação nçao passa de uma recusa grosseira a deixar a obra de arte em paz. A Arte verdadeira tem a capacidade de nos deixar nervosos. Quando reduzimos a obra de arte ao seu conteúdo e depois intepretamos isto, domamos a obra de arte. A interpretação torna a obra de arte dócil, maleável".

E, mais à frente, a autora escreve o seguinte:

"Decididamente agora não precisamos incorporar mais Arte a Pensamento, ou (pior ainda) Arte a Cultura".

Bacana, bem bacana.

Meu problema com esse texto da Sontag, como já disse, é que ele se mostra bastante forte ao criticar uma determinada postura crítica, como se pode ver nesses trechos acima, mas me parece bem frágil ao propor um outro caminho. E o mais curioso é que ela parece perceber qual é a falha latente na última frase do seu texto, que é muito bonita e muito forte:

"Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte".

Bem bacana mesmo, de novo. Mas antes disso ela se põe a defender um outro formato de crítica e aí me pareceu bem evidente o ponto em que ela se travou. Todo esse texto era um ataque à relação pobremente "conteudísta" com as obras de arte, e em dado momento a Sontag lembra que essa divisão "forma versus conteúdo" já é mais do que obsoleta; no entanto, ao final ela se dedica à defesa de uma crítica "formalista", acabando por cair na mesma cilada:

"A melhor crítica, e isso não é comum, é do gênero que dissocia as considerações de conteúdo das de forma (...)
Igualmente valiosa seria a crítica que fornecesse uma descrição realmente cuidadosa, aguda, cartinhosa da aparência da obra de arte. Isso parece ainda mais difícil do que a análise formal.

(...) A função da crítica deveria ser mostrar como é que é, até mesmo que é que é, e não mostrar o que significa".

O que me parece ter escapado à Sontag nesse texto de 1965 é que não há nenhuma diferença entre mostrar "como é que é" e mostrar "o que significa". Justamente porque a arte é essencialmente erótica - ela é uma relação entre um indivíduo e um "algo". Ela não é somente este "algo", esta coisa que se chama obra (filme, canção, livro etc), ela é também a relação que esta obra provoca.

Não quero dizer que a obra é inteiramente inventada por quem vê, mas o ponto é o seguinte: descrever também é interpretar. A descrição também é uma forma de fazer escolhas, de reinventar a obra. Pior do que isso, ela se faz mais claramente fantasmática ao tentar descrever aquilo que pode ser sentido (visto, ouvido etc). Não há descrição que tome o lugar da obra - ou talvez até haja, mas aí será uma obra outra. A simples existência da obra torna supérflua a descrição que se pretende não-interpretativa - me parece que reduzir a tarefa crítica a isso é tornar a crítica uma atividade simplesmente inexistente. Pode até parecer simplismo, mas não é: o risco fatal é que isso seria como reduzir as críticas de cinema a sinopses. A descrição só faz sentido, justamente, quando ela se assume como projeto de interpretação (como os formalistas russos fizeram, por exemplo).

Também me parece que a única forma de fugir do "projeto raconalista de interpretação", portanto, é levar a cabo a sugestão de uma "erótica da arte". Para isso é preciso envolver os próprios sentidos - ou seja, o próprio corpo - na relação com a obra de arte, de forma assumidamente subjetiva, histórica, única. A racionalização, ou seja, a interpretação, é uma estratégia para fazer a crítica escapar desse subjetivismo, que se arrisca a produzir uma certa incomunicabilidade das percepções. A Sontag tem total razão ao questionar o esquematismo de certas escolas interpretativas - mas, entre pensar as sensações ou interpretar a obra, acho que pode ser arriscado (pode ser empobrecedor ou vazio) escolher apenas um dos lados da corda bamba.

Daniel Caetano

http://passarim.zip.net/

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