13.12.09

O ESTADO DAS COISAS

Há uma linha, ainda que um tanto enigmática, unindo alguns dos filmes mais instigantes trazidos pelos festivais recentes. Se a última década transbordou em filmes episódicos e se refestelou na narrativa fragmentária pós-Pulp Fiction, o fato é que de três ou quatro anos para cá o cinema vem apresentando filmes tanto mais importantes quanto mais simplificam seu recorte temporal, de preferência mantendo-o linear (Elefante e Dez, como sempre, são as exceções das exceções). Passada a euforia da desconstrução narrativa – que, de Corra, Lola, Corra a 21 Gramas, expõe um vasto painel pelo qual perdemos o interesse lá pela metade do caminho –, alguns filmes manifestaram novas opções estéticas interessantes. Gerry, Shara, Eureka, Eternamente Sua, The Brown Bunny, Encontros e Desencontros, Japão, O Pântano: cada qual a seu modo, estes filmes trazem alguma coisa muito simples e muito singular.

Os planos alongados de Eternamente Sua e Gerry, por exemplo, não se sustentam apenas numa proposta de narratividade mínima: são planos que respondem a uma duração de outra ordem, não necessariamente da ação (ou não-ação, que seja) e sua inserção no espaço-tempo, mas antes da pregnância de uma sensação. Muito mais do que o narrador de uma história, o cineasta passa a ser o arquiteto do espaço onde se projetam sensações - e estas formam corpos. Mostrar diversos pontos de vista sobre um mesmo evento importa menos do que impregnar o espaço com uma visão que, em meio a tantas outras, é apenas uma visão possível. Está em jogo justamente a singularidade do olhar, seu prolongamento afetivo na imagem. Instaura-se uma nova modalidade de concepção realista do espaço fílmico, em nada lacunar ou dispersiva, e sim calcada no preenchimento: é como se houvesse agora a possibilidade de uma linguagem que suprime os intervalos entre os signos, estruturando-se na contigüidade radical entre eles.

A questão deixa de ser a ausência (total ou parcial) de sentido e passa a ser a profusão de sentidos. A complexidade da violência nas escolas americanas está menos na sua falta de sentido do que na extensão indeterminável do campo de percepção que aqueles jovens atravessam (Elefante). Da mesma forma, o deserto de Gerry não tem tamanho apreensível, cresce indefinidamente pelas bordas da imagem. Impossibilitadas de crescer para o fundo (Gus Van Sant já trabalha nesse filme com pouco uso da profundidade de campo), as imagens de Gerry fogem para as laterais do formato 1:2.35, e o filme se esprai pelo deserto como uma pintura abstrata. Os personagens de Matt Damon e Casey Affleck pouco a pouco desmontam a representação, perdem a consciência que têm do entorno, perdem a noção do espaço, para refazê-la então do zero (como na cena deles olhando o mapa, Affleck tentando lembrar o caminho que percorreram). Seus corpos se des-diferenciando em relação à paisagem e quase engatinhando (a marcha deles vai progressivamente tornando-se lenta, à medida que os pensamentos se infantilizam), até não mais ser possível discernir esses corpos enquanto centros de ação guiados por certa necessidade e por certo conhecimento. O deserto os obriga a interrogar os sentidos, a reconfigurar as dimensões do espaço exterior a partir das dimensões e prioridades do próprio corpo (como na infância da consciência). Matt Damon calha de reencontrar a estrada no justo ponto em que seu organismo estava prestes a falhar – mas o som dos carros o faz perceber que está perto. Se a percepção tem sua verdadeira razão de ser na tendência motora do corpo (Bergson), é bastante curioso que os personagens de Gerry, praticamente abandonados à "percepção pura", passem o filme inteiro arrumando o que fazer, ora em resposta a uma necessidade (ir à procura de água, tentar achar a estrada, descer de uma pedra alta), ora simplesmente edulcorando um tempo morto com brincadeiras ou inventando histórias. O que cabe aos dois personagens de Gerry, perdidos que estão, é desvendar o espaço e insuflar o tempo. O próprio som do filme corresponde a essa estratégia de preenchimento; todos os detalhes se tornam relevantes e ganham volume: os passos no solo árido, o vento, as vozes ecoantes, toda a paisagem sonora construída e captada, tudo é valorizado de modo a não sobrar vazio na pista de som.

Não é privilégio de Gerry esse interesse pelas coisas todas que o envolvem. O Pântano e Encontros e Desencontros, para citar dois filmes que passaram nos cinemas brasileiros este ano, alcançam uma extraordinária investigação do espaço e das relações entre as pessoas que o ocupam. É com o pretexto do tédio e da falta do que fazer que Bill Murray e Scarlett Johansson resolvem desbravar Tóquio em companhia um do outro, e suas perambulações destacam o cenário específico da cidade. É por contrapor diferenças tão bem marcadas à falta de uma motivação nas ações (a ausência de um vetor de causalidade) que as porções de espaço-tempo em O Pantâno são preenchidas com tamanha e latente violência – a abertura que o filme faz para a ambigüidade e a circunstancialidade imanentes ao momento presenciado é tão grande, que a situação em si (o conjunto de fatos brutos, sem lapidação) se torna violenta. Todo o filme de Lucrecia Martel se banha na substância pegajosa de sua paisagem-título: os personagens se encostam e se afastam como um deslizar natural de corpos que ocupam o mesmo recipiente (com a devida pressão inserida nele).

A personagem de Eternamente Sua (Blissfully Yours, de Apichatpong Weerasethakul, obra-prima exibida no Festival do Rio de 2002) que forja um atestado médico para conseguir dispensa no trabalho e passar a tarde ao lado do namorado está tão-somente criando um tempo livre, que deverá ser aproveitado com nada mais (nem nada menos) que vida, com o passeio bucólico ao paraíso que o filme – e, conseqüentemente, o espectador – desvela no seio de uma floresta da Tailândia. O filme nos passa a sensação de escoamento de tempo como raramente se vê: na sua última hora, o tempo de metragem praticamente bate com o tempo diegético (mas não é um tempo pesado, tarkovskiano, e sim um tempo leve e fugidio). Apichatpong ainda dedica uns vinte minutos à mise en scène do sono (evocando a experiência warholiana, mas trabalhando estética e narrativamente diferente), quando seus personagens deitam à beira do rio para descansar. É mostrada uma sucessão de planos em que os corpos são recortados de forma precisa pelo enquadramento, sendo justapostos a outros planos em que eles aparecem ao longe, rodeados pela natureza. Essa seqüência, definitivamente antológica, organiza as superfícies e as intensidades luminosas através de ritmos visuais que conjugam plástica e temporalidade na medida em que colaboram com a duração específica do espaço e, conseqüentemente, dos corpos que a ele se integram. Os sons da floresta e do rio que corre ao lado se tornam mais audíveis que em qualquer outra passagem do filme.

Pouco antes do término de Eternamente Sua, como que para coroar a obra-prima, há um plano com a câmera apontada para o céu, onde o sol acha brecha entre as nuvens e copas de árvores: aguardou-se pelo acontecimento da luz. Assim como O Pântano, Eternamente Sua não se furta à perscrutação de uma paisagem específica (mais delimitada no filme de Apichatpong, e mais espacialmente complexa no de Martel – uma vez que ela articula também um tecido social focado em vários núcleos) e à pesquisa sensorial em torno dela. Trata-se, num caso ou no outro, de um cinema em que o pano de fundo se descola e migra para a superfície, e em que a luz de preenchimento se torna a própria luz do filme. O cineasta constrói paisagens visuais e sonoras muito particulares, corroborando atmosferas locais, incrementando a sensibilidade do material, quase que inventando imagens táteis. Em Eternamente Sua, chegamos muito perto de sentir a pele em contato com o mato e com as formigas vermelhas. O Pântano ressalta texturas e estados físicos das coisas como a nos querer oferecer as imagens também ao tato. Shara (de Naomi Kawase, um dos cinco maiores destaques do Festival do Rio do ano passado) quase nos molha com a chuva abrupta na cena do desfile.

É, em grande medida, a capacidade de imersão e de incitação a uma experiência hipnótica o que o cinema está aprimorando através desses filmes. As paisagens ultrapassam os personagens e, ao mesmo tempo, escapam ao campo de visão do cineasta. A cidade que absorve o estrangeiro nas suas luzes e nos seus sons (Encontros e Desencontros), o deserto que engolfa seus visitantes (Gerry), a floresta que abriga placidamente um casal em tarde de folga (Eternamente Sua), o solo movediço que desfaz e refaz a distância entre aqueles que o pisam (O Pântano), a estrada sem fim que serve de palco para o travelogue sentimental e intimista de Vincent Gallo (The Brown Bunny). Da continuidade da obra desses cineastas (em sua maioria, pertencentes a uma geração que começou a filmar da segunda metade dos anos 90 para cá), no mínimo os novos filmes de Apichatpong Weerasethakul (Mal dos Trópicos) e Lucrecia Martel (Santa Menina) o Festival do Rio deste ano já nos dá a chance de ver. Mais do que imperdível.

Luiz Carlos Oliveira Jr.
Contracampo




Um texto que me moveu bastante. Entrei em contato com várias questões pela primeira vez. Me aproximou de muitos autores eternos. Grata!

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